R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Rapariga que Adorava Tom Gordon

por Stephen King

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 08.07.2003

Tem-me acontecido um fenómeno curioso à medida que vou tomando conhecimento da obra de Stephen King, autor que ignorava por completo (devido em grande medida à etiqueta de "escritor de best-sellers" que se lhe colou) até há bem pouco tempo: o meu apreço pelos livros varia em proporção mais ou menos inversa com o número de páginas que eles contém.
A Rapariga que Adorava Tom Gordon é um romance pequeno pelos padrões contemporâneos da literatura de género americana: apenas 209 páginas. Bem longe dos grandes calhamaços de mais de 500 páginas que quase ocupam sozinhos prateleiras inteiras, e a cuja tentação praticamente todos os escritores, King incluído, já cederam.
No entanto, e felizmente, os romances não se medem em número de páginas. E este pequeno livro contém um grande romance.
King conta-nos a história de Patricia (Trisha) McFarland, menina de 9 anos com uma paixão arrebatadora por basebol, e especialmente por um determinado jogador, Tom Gordon. Não a história da vida dela, mas sim a história daquilo que acontece a Trisha a partir do momento em que se perde numa floresta da Nova Inglaterra, algures entre o Maine, o New Hampshire e a fronteira canadiana.
King é um escritor de terror. Ditas as coisas assim, a imagem que vem ao cérebro de quem lê é um composto de fantasmas, lobisomens, poltergeists, vampiros e todas as demais manifestações do sobrenatural que saíram dos mitos e da imaginação humana para o mundo real através da literatura, banda desenhada e cinema. No entanto, neste livro esse tipo de terror praticamente não existe.
Sim, Trisha é perseguida por uma "coisa", que lhe vai acompanhando os passos e a luta pela sobrevivência, enquanto se esforça por chegar a algum sítio com algo de humano, enquanto procura ultrapassar a febre e as cólicas que aquilo que come na floresta lhe provocam, e continuar a andar. Mas será que essa coisa é sobrenatural? Ou será que nasce do delírio da própria Trisha?
Seja como for, o terror está presente, e bem presente. Um terror concreto, porque o perigo de morte da menina abandonada num lugar que lhe é quase totalmente estranho é algo que nunca está muito afastado. Nem mesmo quando o sol brilha. Nem mesmo enquanto Trisha acompanha os relatos dos jogos dos Red Sox através do seu walkman.
É um terror psicológico, mais do que sobrenatural. E King serve-no-lo com mão de mestre, um dominio perfeito dos tempos de escrita, um controlo completo sobre a narrativa, sem as digressões irrelevantes que usa noutros livros para engordar histórias que não precisam de ser engordadas, fazendo surgir a "coisa" exactamente quando já nos começávamos a esquecer dela, e aumentando assim, e de que maneira, o impacto de cada episódio.
Seria óptimo que a literatura fosse mais vezes assim.
E a tradução? João Brito dá ares de ser um excelente tradutor. Consegue deixar passar o estilo de King sem deixar passar o inglês original. Mas será que é mesmo? Será que o romance está mesmo muito bem traduzido? Será que não o aparenta, apenas?
É que, a páginas poucas, surge uma referência a Bilbo Baggins, e pouco depois ao romance de Tolkien que o apresentou aos leitores. Mas, em vez de lhe chamar o nome correcto, pelo qual toda a gente em língua portuguesa o conhece, o título de todas as edições dos últimos 30 anos ou mais, O Hobbit, Brito resolve chamar-lhe O Gnomo. Consta que houve em tempos há muito idos uma adaptação do livro de Tolkien com esse título. Mas a tarefa do tradutor é procurar adaptar referências e traduzir apenas o que é inteligível. Por isso, chamar hoje em dia gnomo ao hobbit é um tremendo disparate.
Um disparate tão grande, que este leitor levou todo o livro na dúvida: "será que esta tradução está tão boa como parece? Ou será que há mais asneirada, escondida algures, sem que eu dê com ela?"
Até que decidi esquecer as dúvidas e procurei apenas saborear o livro, que merece ser muito bem saboreado. Uma óptima edição, um óptimo romance, de um autor que, com os altos e baixos que todos têm, consegue ser com frequência óptimo também ele.
Cinco estrelas.

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A Rapariga que Adorava Tom Gordon

por Stephen King

Círculo de Leitores

tradução de João Brito

2001

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