R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

À Espera de um Milagre

por Stephen King

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 09.10.2003

É quase certo que a maioria esmagadora das pessoas que conhecem esta história, a conhecem através do filme e não através de qualquer uma das edições que o romance teve. É que The Green Mile, de Frank Darabont, com Tom Hanks no papel principal e uma série de outros actores de qualidade nos secundários, foi um êxito razoável quando foi lançado, em 1999, obtendo mesmo quatro nomeações para os óscares do ano seguinte.
Mas esta crítica é sobre o livro, lançado três anos antes, de uma forma muito especial.
King é useiro e vezeiro em experiências no campo da edição, que muito têm contribuído nos últimos anos para lhe incrementar a fama, e neste romance resolveu fazer mais uma, retomando um método de edição há muito abandonado na maior parte dos géneros e subgéneros (embora ainda hoje se pratique de vez em quando nas revistas de ficção científica e fantástico): a subdivisão de uma história em fascículos que vão sendo publicados separadamente. Mas, se hoje é bastante raro, no final do século XIX este método de edição era bem mais comum. Foi assim, por exemplo, que Charles Dickens publicou muitos dos seus romances, facto que serviu de inspiração a Stephen King, e foi também assim que muitos dos romances do romantismo português viram pela primeira vez a luz do dia.
À espera do milagre de que a coisa voltasse a dar resultado na recta final do século XX, King dividiu o seu romance em seis partes, ocupando cada uma cerca de 60-70 páginas nesta edição do Círculo de Leitores, e sendo cada uma publicada originalmente em separado como livro de bolso. Mais tarde, King acabou por juntar tudo num volume único (e fê-lo, diz, com alguma relutância), sem grandes mudanças no texto dos livros de bolso. É essa a edição que acabou traduzida para português.
Mas de que trata a história? "The green mile" é a alcunha irónica que foi dada ao corredor da morte de uma prisão situada no sul dos Estados Unidos, no início dos anos 30, devido ao linóleo verde que lhe forrava o soalho. E a história que o romance conta descreve precisamente um período curto na vida de alguns dos homens que puseram os pés nesse linóleo: condenados à cadeira eléctrica e guardas prisionais, com um rato muito especial à mistura.
O romance revolve em torno de duas personagens:
Por um lado, temos Paul Edgecombe, o narrador, o homem que escreve a história muitos anos depois dos anos 30, na sua terceira idade, a partir de uma luxuosa "casa de repouso", mas que fora chefe dos guardas prisionais. Na história, Edgecombe é um guarda humano e inteligente, que encara o seu serviço de carcereiro e carrasco como o cumprimento de um dever perante a sociedade: o dever de cumprir as decisões da justiça. Edgecombe, além disso, é vítima de uma infecção urinária que o tortura e que vai servir de catalisador para a relação especial que estabelece com a outra personagem principal do romance: John Coffey.
Coffey é um negro gigantesco que foi condenado à morte, com base em provas circunstanciais, pela violação e assassínio de duas rapariguinhas brancas. Mas percebe-se desde o início que se trata de um inocente, com grandes limitações intelectuais que o envolvem numa aura de ingenuidade bem pouco compatível com os crimes por que foi condenado. É também um ser rodeado de mistério. Ninguém sabe de onde veio, se tem família e, se a tem, onde. Ninguém o conhece em lado nenhum. Ninguém nunca o tinha visto onde quer que fosse.
É principalmente em torno desta personagem estranha que todo o romance se vai desenrolar. Entre acontecimentos que se passam dentro da prisão e factos descobertos por Edgecombe, quando este resolve ir tentar satisfazer a sua curiosidade sobre o prisioneiro, totalmente ao arrepio das regras, ficamos a saber, entre outras coisas, que Coffey tem o dom de curar e de insuflar vida nos seres vivos, chegando mesmo a ser capaz de resgatá-los à morte, e que nunca poderia ter cometido o crime de que é acusado.
E basicamente, À Espera de um Milagre é isto: a história da descoberta de quem é John Coffey e dos acontecimentos que o levaram à cadeira eléctrica, bem como do verdadeiro culpado pelo crime por que Coffey é acusado. Pelo meio, acontecem variadas peripécias que formam pequenas histórias laterais à história principal, contribuindo, umas mais do que outras, para o estabelecimento das regras por que ela se rege, e envolvendo quer as personagens principais, quer as secundárias, algumas delas bastante importantes para o todo. De entre estes actores secundários destacam-se um cajoun chamado Delacroix, que passa os seus últimos dias numa relação de amor por um rato amestrado que o humaniza, um outro condenado chamado Wharton, este um verdadeiro psicopata que se julga uma encarnação do fora-da-lei Billy the Kid, um guarda calmo e forte, braço direito de Edgecombe, alcunhado de "Brutal", um outro guarda, estúpido e mesquinho, potencialmente tão criminoso como os criminosos que guarda, chamado Percy, e finalmente a mulher do director da prisão, Melinda, vítima de um tumor no cérebro que a mata aos poucos, obrigando-a entretanto a ataques de incoerência recheada de palavrões.
É uma história complexa e interessante, 443 páginas cheias de ambientes bem construídos e personagens soberbas. Mas, paradoxalmente, o romance não funciona lá muito bem.
O problema está na manutenção das seis partes tal e qual foram editadas. King, a fim de criar uma estrutura global para os seus fascículos, utilizou o recurso de colocar na pena de um Edgecombe envelhecido a narração de toda a história, e de fazer, no início de cada uma das últimas cinco partes, recapitulações daquilo que tinha ficado escrito para trás. Ora, se numa série de histórias que contam uma única história, este artifício pode ser necessário para que os leitores mais distraídos não percam o fio à meada, a verdade é que num romance colocado apenas entre uma única capa e sua contracapa, tem a consequência oposta, quebrando o ritmo da história e podendo levar esses mesmos leitores distraídos a perder o fio à meada. Não resulta bem.
Mas se não contarmos com isso, com o título português, escolhido devido ao título do filme, mas muito inadequado, e com uma capa que tenta capitalizar com o sucesso do filme, utilizando uma fotografia de Tom Hanks, tornando-se por isso mesmo redutora, esta é uma boa edição. O romance, embora falhe de certo modo enquanto tal, conta uma óptima história, com óptimas personagens, a tradução é bastante boa e o objecto-livro é excelente, como é habitual, aliás, no Círculo de Leitores.
Tudo somado, leva quatro estrelas.

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À Espera de um Milagre

por Stephen King

Círculo de Leitores

tradução de Lídia Geer

2000

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