No Vento Frio de Tharsis
por Jorge Candeias
conto publicado em 09.08.2002
republicado em 04.08.2003
Tim Santos esperava o vento.
Havia já quase uma hora que estava empoleirado naquele lugar, tão perto do céu rosáceo de Marte que era como se bastasse esticar o braço para tocá-lo. Visto de longe, Tim não passava de um ponto refulgente, como que coroando a ponta daquela agulha de rocha baça. De longe não se via nem cinto nem arnês, nem as cordas que lhe ligavam o corpo à asa gigantesca que por enquanto estava vazia de vento, repousando ainda meio dobrada na plataforma à sua frente. De longe viam-se apenas os reflexos que fazia no seu fato o mundo que o rodeava, cacos deformados do sol, do céu e dos vales e montes que constituíam o solo, imagens distorcidas de trezentos e sessenta graus e muitos quilómetros quadrados do Marte que se estendia em torno de si.
De perto, vislumbrava-se-lhe por detrás da máscara a luz dos olhos. Olhava para ocidente, com insistência. Procurava nas ondulações do grande planalto de Tharsis algum sinal do prometido vento. Um fio de pó, um remoinho, um tremeluzir quase invisível da atmosfera.
Se olhasse para oriente, lá para baixo, para o fundo do vale, veria ainda as últimas voltas pachorrentas do aeroplano que o trouxera para ali enquanto se ia aproximando lentamente de Umbra. Se estivesse menos frio e pudesse descobrir a cabeça, conseguiria ainda ouvir o ronronar longínquo do seu motor, sobrepondo-se ao silêncio de uma atmosfera sem vida onde não soprava uma aragem. Mas estavam muitos graus negativos naquele alvorecer do longo outono marciano, e assim, completamente recoberto pelo fato, só conseguia escutar o sopro surdo dos gases que circulavam no espaço estreito que ficava por cima da roupa interior. Era um sussurro reconfortante, o murmúrio da vida, continuamente gerada pela película exterior fotossintética do fato e enviada até aos pulmões por minúsculas e levíssimas bombas, ventoinhas diáfanas mas resistentes, aspiradores quase invisíveis.
Mas para Tim Santos tudo isso se passava abaixo do limiar da consciência. Para ele, a maravilha tecnológica que o recobria era a sua segunda natureza, como que uma pele extra que lhe permitia sobreviver sempre que saía das cúpulas em missão e, também, havia já dois anos marcianos, dedicar-se ao hobby que escolhera.
- Amélia, vou para Marte.
- Calha bem, querido. Assim apanho boleia metade do caminho até Júpiter.
- Não brinques, Amélia. Falo a sério.
- Claro que falas a sério, querido. Mas enquanto estás por aqui passa-me o sal, sim?
Tim só tinha olhos para a chegada do vento. Só tinha ouvidos para o rádio, de onde poderiam chegar a qualquer momento novas informações provenientes da estação meteorológica de Deimos. Só tinha atenção disponível para mais uma verificação aos cabos, aos arneses, às presilhas, à botija de ar de reserva, obrigatória para a eventualidade de avaria no fato ou de um esforço físico que tornasse necessário mais fluxo de oxigénio do que aquele que as pequenas máquinas moleculares podiam fornecer, uma botija especial, levíssima, meio vazia para diminuir o peso e aumentar a sustentação.
Tim Santos esperava o vento.
Já vinha atrasado, o vento. Aquele vento típico das Nascentes do Vale, um vento frio e seco, entre aragem e furacão, um vento que se se pudesse cheirar evocaria a lava fria das vertentes dos três vulcões gémeos de Tharsis. Lá em baixo, em Umbra, chamavam-lhe Siroco, um nome a uma vez irónico e reconfortante. Para Tim era apenas o seu vento, o seu companheiro de todas as folgas, um sopro de vida que tardava para a sua asa.
Vinha já atrasado, o vento. Costumava ser pontual, costumava começar a afagar a vela assim que Tim terminasse as verificações de segurança, levantando-o no ar logo em seguida num misto de força bruta e suavidade, como que com cuidado para não magoar ou rasgar.
Por isso, Tim olhava insistentemente para ocidente, como que pedia ao seu vento para vir ter com ele, interrogava-se sobre o que lhe teria acontecido, que encontro inesperado o poderia ter retido.
Um sopro finíssimo de poeira no ar, lá longe por detrás de uma colina, e logo outro e outro ainda, pequenas nuvens que se elevavam no ar cada vez mais próximas, cada vez mais nítidas. Tim soltou um meio sorriso. Era o seu vento que chegava, como que respondendo ao seu apelo mudo.
- Amélia, vou para Marte.
- Sim, querido, já me tinhas dito.
- Mas tu ainda não acreditas no que te digo.
- Isso é uma pergunta?
- Amélia, eu vou mesmo para Marte.
- Claro que vais, Tim, claro que vais...
O vento enfunou primeiro uma dobra da asa, logo depois outra, e pouco a pouco, sopro a sopro, foi-a desdobrando, erguendo no ar. Agora, Tim já não pensava em nada que não fosse o movimento que teria de fazer em seguida. Procurava apenas manter um controlo rígido sobre os panos, escolhendo uma corda após outra e puxando, ou dando mais folga, ou sacudindo para que mais uma que outra dobra se soltasse e lançasse ao ar, enfunando-se e aumentando a pressão sobre o resto da asa e o passageiro, diminuindo o peso do conjunto, tornando mais próxima a descolagem.
De súbito, uma rajada mais forte agarrou na vela com as mãos cheias, e Tim deixou de sentir o chão debaixo das botas. Voava. Era por fim um com a sua asa, um com o seu vento, um com todo o planeta, suspenso sobre o abismo a quilómetros do chão.
- Amélia, vou para Marte.
- Bolas, Tim, que chato!
- Desculpa. Mas tens de te convencer de que eu vou mesmo para Marte.
- Tim, nem tu és o Schwarzenegger nem eu sou a Sharon Stone nem nós estamos num filme antigo. Portanto pára com isso!
Manobrou para se afastar da falésia, mergulhando, ganhando velocidade, e descrevendo depois uma longa curva para voltar a subir, de frente para o vento que soprava agora firme e gelado. Sorriu de novo, sem disso ter consciência, ao ver a nuvem de poeira que se dissipava devagar no topo da agulha onde estivera pouco antes, o último vestígio da descolagem. À sua frente, a Nascente do Vale subia, irregular, até Tharsis, mostrando ao universo as suas camadas, a história completa dos sedimentos e depósitos de lava de Marte. Lá muito em baixo, em Umbra, a sombra do amanhecer persistia e a cidade vislumbrava-se de uma forma indistinta, numa penumbra criada pela luz reflectida nas paredes do desfiladeiro e pontuada pelas lâmpadas que iluminavam as poucas ruas e edifícios que subiam à superfície sob a cúpula.
Depois da ansiedade acumulada na espera pelo vento, Tim sentia-se contemplativo, num contraste paradoxal com o estado de espírito em que deveria estar se a mente obedecesse sempre aos ditames da teoria. Por isso, em vez de se lançar à aventura, limitou-se a vogar durante longos minutos, apreciando a paisagem, tentando evitar que o seu olho profissional entrasse em acção ao percorrer as rochas do desfiladeiro e começasse a separar automaticamente os basaltos das ortopiroxenites e estas das argilas mais antigas, a catalogar as suas infindas variedades, tentando evitar que os tiques e manias da profissão que adoptara lhe estragassem o dia de folga.
Quando percebeu que estava a olhar havia quase um minuto, franzindo o sobrolho, para um tipo raro de olivina que se projectava de uma cornija, sacudiu o torpor descrevendo uma curva, voltando as costas à distracção e começado a treinar as manobras habituais.
- Amélia, vou para Marte. Está aqui o bilhete. Parto amanhã.
- Mas porquê, Tim? Que te fiz eu?
- Tu nada, Amélia. É só que...
- É que o quê? Explica-me pelo amor do que quiseres, que amor por mim está visto que não tens nenhum...
- Não é isso Amélia. Eu... desculpa-me, mas tenho mesmo de ir. O problema não és tu, sou eu.
- Que problema, Tim? Explica-me! Que...
Durante as horas que se seguiram, Tim não permitiu que nada lhe penetrasse a concentração. Concentrado na vela, no seu próprio corpo, nos efeitos que os seus movimentos causavam no voo, e principalmente no vento, antecipava cada rajada, aproximava-se da falésia para se afastar em seguida, em queda ou em ascensão, fazendo curvas apertadas, ameaçando loopings, mas na soma de todos os movimentos caindo sempre, cada vez mais, como se fosse passageiro de uma montanha russa feita de ar. Porque ali, tão acima do solo do fundo do Vale, não havia correntes ascendentes de ar quente que se pudessem aproveitar e só o vento dava sustentação à sua asa.
Tim Santos escolhera um divertimento arriscado. Era a sua forma de sentir-se vivo, agora que o pioneirismo dos primeiros anos da colonização marciana terminara e viver no planeta cor de ferrugem era já quase tão seguro como na velha Terra.
- Não nasci para isto, Amélia. Não fui feito para a rotina...
- Rotina? Que rotina, caramba? Nós estamos sempre em movimento, não paramos nunca. Quantos empregos já tu tiveste nos últimos dois anos? Chamas a isto rotina?
A princípio ainda havia o risco. Cada saída das cúpulas era uma saída para o desconhecido, um potencial encontro com o inesperado. Mas a pouco e pouco, a vida foi-se banalizando, os trilhos foram-se formando, a paisagem marciana foi-se tornando cada vez mais familiar, os perigos reais foram identificados e catalogados e os imaginários descartados. A pouco e pouco a exploração cedeu lugar à experimentação metódica e planificada. A pouco e pouco as normas de segurança tomaram primazia. A pouco e pouco a tecnologia foi-se tornando cada vez menos falível.
Viver em Marte tornara-se quase a forma familiar de viver, especialmente dentro da segurança das cúpulas onde se podia olhar para cima de cabeça descoberta e sentir o sol bater na cara através do céu rosado, respirando um ar quase sem cheiros.
Por isso, Tim voava. Só ali se sentia completo, separado da atmosfera ténue e irrespirável do planeta por uma película fina de tecido repleto de tecnologia de ponta, sozinho com o vento, sujeito aos caprichos das rajadas, capazes de agarrá-lo e atirá-lo de encontro às rochas, despedaçá-lo no solo, desfazê-lo em bocadinhos pequenos demais para recuperar, muito para além da capacidade de reparação do centro médico de Umbra ou dos cirurgiões com fama de magos de Pathfinder.
- Sou um pioneiro, Amélia. Aqui na Terra já não há nada onde possa ser o que sou.
- Nem mesmo nas fossas profundas?
- Não, nem mesmo aí. Ninguém vai lá abaixo, Amélia. Só enviam robots. Os homens ficam a ver, sentados nos gabinetes, ligados à rede.
- Tim, por favor...
- Não me prendas, Amélia. Aqui sou infeliz. E tu não me queres infeliz, pois não?
Naquele dia, no entanto, o vento soprava suave e as rajadas eram apenas fortes o suficiente para arrancar das paredes do Vale fiapos do pó lá depositado pela última tempestade de areia.
Tim aproveitou para levar a vela ao limite. Aproximou-se das paredes do desfiladeiro até à distância de um sopro, lançou-se em voos picados e acrobáticos, espirais, sinusóides, alternou quedas quase livres com voos quase horizontais. Fez da descida o que quis.
Cinco horas mais tarde pisou o fundo do Vale. Esperava a euforia habitual de um voo bem executado. Ainda soltou um par de gritos. Mas estava apenas a cumprir um ritual, e por detrás da máscara, a face que espreitava era melancólica, defraudada, insatisfeita.
Sinalizou à Rede Local a sua posição e enquanto esperava o transporte que o vinha buscar, deixou o olhar vogar para cima, para a nascente do Vale, para a agulha de pedra de onde saltara. Voltaria lá em breve.
- Não acredito que seja só isso, Tim. Que é que tu procuras? Que é que tu procuras realmente?
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