O Talismã
por Stephen King e Peter Straub
uma crítica de Simone Saueressig
publicada em 18.10.2003
Publicado no Brasil originalmente em 1985 pela Francisco Alves, O Talismã de Stephen King e Peter Straub reaparece neste 2003 em uma nova edição da Objetiva que está relançando a obra do conhecido "mestre do terror" moderno, talvez até como uma preparação para a edição de outras obras até agora inéditas no Brasil.
O Talismã conta a viagem de Jack Sawyer, então com 12 anos, de um lado do outro dos EUA, em busca da cura para o câncer terminal de sua mãe Lily Sawyer. Para isso, o menino embarca em uma jornada entre dois mundos: a América e os Territórios, espécie de mundo paralelo, mágico e de tintes medievais. De carona em carona, seja em automóveis ou carroças, Jack vai gastando a sola de seus tênis num caminho que mais de uma vez evoca a canção de Bilbo Baggins ao partir de Bag's End: "Para longe prossegue a estrada, da porta de onde brotou...". A estrada que se perde no horizonte é ainda um dos mais apaixonantes mistérios do mundo.
Entretanto, O Talismã esbarra em um começo cheio de obstáculos: além da narrativa tropeçar continuamente em redundâncias (em alguns trechos o mesmo fato nos é contado várias vezes, sem que isso signifique uma alteração do ponto de vista dos autores), existem dois problemas que são resolvidos somente com o auxílio da boa vontade do leitor. O primeiro é a introdução da idéia da existência de um outro mundo e a possibilidade de se chegar a ele por vias aparentemente mágicas. É de se perguntar se a meados da penúltima década do século XX um garoto bem educado, culto e sofisticado como Jack Sawyer acreditaria em semelhante realidade a ponto de arriscar-se por ela, sobretudo se esta existência for revelada por um negro velho e pobre, trabalhador de um parque de diversões e músico de blues. É bem verdade que o personagem encontra-se encurralado: está em um lugar que mal conhece, em companhia de sua mãe doente e fugindo do antigo sócio do pai falecido. Mas não seria de se esperar que este mesmo Jack, justamente por ser inteligente, culto e sofisticado, insistisse com a mãe para ir a um hospital? Nem a compreensão imediata de que trata-se de um menino especial soluciona este que é um dos primeiros problemas na lógica no texto de O Talismã.
O segundo problema está em sua partida. Obviamente, o leitor imediatamente compreende e se identifica com o que o enredo subliminar da história: Jack é o leitor em sua idade de amadurecimento, quando deixamos a infância a contragosto para iniciar a nossa viagem rumo ao mundo adulto. É o velho ritual de passagem em sua forma mais antiga, – a da jornada por um mundo hostil, durante a qual a criança ou amadurece ou sucumbe – transferido diretamente para o mundo moderno. Mas é justamente na partida do menino que se dá o ponto mais crítico da narrativa de O Talismã. Jack, anuncia à sua mãe que vai ter de fazer uma viagem durante a qual ele espera encontrar uma forma de salvá-la. Sem explicações realmente convincentes, Lily Sawyer, mãe de Jack, concorda com a proposta. E a pergunta na qual tropeçamos todos é: que espécie de mãe concordaria com isso, qualquer que fosse a circunstância, sobretudo em um país famoso – por um lado – pela preocupação por sua infância, ao ponto que semelhante atitude pudesse lhe custar a Lily a guarda do filho e – por outro – tão perigoso para seus próprios rebentos?
Entretanto, vencidos estes dois obstáculos iniciais, a história de O Talismã flui sólida e convincente, entre poética e terrível. Para os que amamos este livro, a jornada de Jack Sawyer, com toda a sua carga de tragédia e violência, vibra com uma positividade, com uma capacidade de renovação quase incompreensíveis. Como alguém pode encontrar algo de positivo em uma história que trata sobretudo da angústia de perder a infância de maneira irreversível e trágica? Pois porque a história, como quase todas as de terror e fantasia, é uma metáfora. Nada do que se passa ali é para ser tomado ao pé da letra, mas compreendido com o coração. Esta história sobre a perda da infância, comprometida com o leitor, apresenta uma proposta pessoal e íntima, preocupada em explorar as capacidades do personagem – que são as capacidades do próprio leitor, que são as capacidades de todo o ser humano. Os autores não poupam nada: testam a resistência física, moral, intelectual e espiritual de seu personagem sem a menor complacência, tal como o mundo faz com os leitores do livro. E porque Jack atravessa íntegro esse caminho, acreditamos que também é possível para nós sobreviver aos pesadelos e perdas da vida real e sair tão vitoriosos quanto o personagem: a vitória de Jack é não perder nunca de vista seu objetivo, que é salvar a vida de sua mãe e não tomar para si o eixo de todos os mundos possíveis, o Talismã. Ou seja, o objetivo é a família, é o ser humano que amamos e não o poder egoísta, a conquista em si mesma, a Coisa adquirida ou roubada. O importante é a felicidade que conseguimos para os que amamos, felicidade que pode estar ligada a dinheiro ou poder mas que nem sempre o é, já que está profundamente relacionada ao bem estar do Outro.
A parte disso, há páginas desta obra realmente bem escritas, trechos antológicos que fazem o leitor vibrar com intensidade: a visão dos homens alados, o desenlace do inferno da Casa do Sol (Lar Luz do Sol, de acordo com a tradução de A Casa Negra, Editora Objetiva), ou o encontro de Jack com o Talismã. Usando a metáfora dos romances de fantasia, para revelar a preocupação em torno da infância violada pela realidade cotidiana, Peter Straub e Stephen King nos fazem compreender e refletir sobre coisas a respeito de nós mesmos e de nossa própria existência. Um espelho tão encantado quanto o que Jack recebe de presente em uma feira rural dos Territórios.
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