R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Fronteiras

editado por Maria Augusta e António de Macedo

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 08.03.2004

Fronteiras é a terceira antologia editada por ocasião dos encontros de FC&F de Cascais, a segunda editada pela Simetria, e também a segunda coordenada por Maria Augusta e António de Macedo. Inclui um prefácio em jeito de manifesto (ou será um manifesto em jeito de prefácio?), um dos raríssimos artigos relativamente teóricos sobre o género em Portugal e dez contos, dois dos quais traduzidos do inglês, e os restantes escritos directamente na nossa língua por autores ingleses (1), brasileiros (2) e portugueses (5).
Do prefácio, escrito por Daniel Tércio, não reza a história. Cumpre a sua função de apresentar o livro e por aí se fica, apesar do nome pomposo (Manifesto de Fronteira), abrindo rapidamente caminho ao que de facto interessa.
E o que de facto interessa começa com A Ficção Científica em Portugal — Desenho de um Território, de Teresa Sousa de Almeida. Não será um artigo extraordinariamente bom ou detalhado, que não é, não irá lá muito ao fundo do assunto, que não vai, mas a produção de artigos de sabor académico sobre a FC portuguesa é tão escassa que estas 11 páginas se transformaram num marco. Não serão suficientes para aconselhar a compra do livro a todos os que se interessam com um mínimo de seriedade pela FC que por cá se tem feito, mas são um bom passo nesse sentido.
Ad Maiorem Dei Gloriam, de Maria de Menezes, é a história que se segue. Trata-se de um conto corrosivo acerca do fanatismo religioso e messiânico, neste caso induzido num clone fruto de engenharia genética por uma herarquia católica profundamente cínica. É um conto adequadamente subversivo, e que por isso cumpre os mínimos do que se propõe. É aceitável. Mas não é um bom conto: leitores com maiores dificuldades em suspender a descrença deparam com alienígenas cuja principal "esquisitice" é o nome, zi'q'ar, e o facto de serem intrinsecamente incréus, e exclamam imediatamente: alto aí! A boa FC consegue contornar estes detalhes. Esta história não consegue.
Segue-se uma história alternativa de Gerson Lodi-Ribeiro, Crimes Patrióticos. Trata-se de uma história passada no universo da novela premiada A Ética da Traição, no qual o ponto de divergência é a derrota do Brasil na Guerra do Paraguai. Uma vez mais, os leitores portugueses encontram neste universo do escritor brasileiro uma ambientação histórica que lhes é, em grande medida, estranha — toda a História da América do Sul, desde as independências do século XIX até aos nossos dias, está praticamente ausente da cultura geral dos portugueses — mas aqui há menos História do que em A Ética da Traição, o que torna mais fácil a apreensão deste conto. Cruzam-se aqui nacionalismos, lealdades e vinganças num novelo complexo e bastante bem conseguido, com a vantagem extra de um desfecho surpreendente. Um ponto alto deste livro.
Roberto de Sousa Causo fecha logo a seguir a participação brasileira, com A Mulher Mais bela do Mundo. Trata-se de uma história mediana onde duas espécies muito diferentes se encontram e descobrem que têm exactamente os mesmos problemas. Em pano de fundo, um fotógrafo brasileiro, em Nova Iorque, fotografa e apaixona-se pela mulher que, segundo ele, é a mais bela do mundo. Um texto suave e relativamente bem conseguido, em que os alienígenas não passam de um artefacto ficcional para falar da nossa própria espécie.
Gwyneth Jones abre a secção traduzida com La Cenerentola (ou A Cinderela — não consigo entender porque optou João Barreiros, o tradutor desta história, por não traduzir o título), uma fantasia com laivos cyberpunk passada num futuro em que tudo parece possível. Com uma componente sexual forte, centrada num casal de lésbicas americanas que se passeia pela Europa do sul, de férias, com a filha, é uma história sobre os limites éticos do tempo que nos espera, em que os desenvolvimentos científicos nas ciências biológicas abrem um mundo imenso de possibilidades. É uma história muito bem construída e densa, que nunca deixa de ser surpreendente.
De volta a Portugal, encontramos Entre Horizontes, de António de Macedo. Trata-se de uma história típica do autor, de um anti-cientifismo total e tingido de misticismo e onde se misturam cientistas sem escrúpulos, uma personalidade cibernética, herdada de uma cientista morta, que é utilizada para comunicar com Saturno, onde uma estranha entidade parece existir e não existir em simultâneo, e uma hierarquia católica dona dos grandes segredos mas assaltada por revelações incómodas sobre a natureza de Cristo, provenientes da tal entidade saturnina. Uma prosa relativamente competente, se bem que repleta de palavrões pseudo-científicos, talvez faça com que quem goste deste tipo de mistura temática consiga digerir este conto.
Para alívio de quem gosta de boa FC, salta-se em seguida para Inglaterra onde Stephen Baxter nos oferece um conto excelente sobre os limites da realidade na sociedade da informação: Terra de Vidro. O protagonista é um investigador que tem como tarefa a tentativa de deslindar um assassínio aparentemente impossível, para o que depende da visão do mundo que lhe é fornecida pelo seu assistente de realidade virtual. Não posso dizer muito mais do que isto sem desvendar o enredo, que é fundamental para completa apreciação deste conto, mas posso dizer que a história pode ser vista como uma crítica aos efeitos que podem ter os filtros politicamente correctos sobrepostos à crueza da realidade, se levados ao extremo. Um conto que vale muito a pena ser lido.
E depois de Baxter, João Tiago. Trata-se de um autor que apareceu para ganhar o prémio Simetria desse ano com O Regresso do Super-Homem e depois nunca mais voltou a ser visto. A história, relativamente bem escrita, relativamente experimental, é, apesar disso, um ponto baixo neste volume. Usa os artifícios de desconstrução da narrativa e de introdução do autor na própria história que já se transformaram há muito num cliché pós-moderno, e que têm como efeito que a dado passo o leitor já não sabe muito bem se está a ler uma história ou uma história sobre alguém que escreve uma história. Quanto à história propriamente dita, é também ela banal: num tom mais ou menos surrealista, cria-se um super-homem em laboratório, ao qual são agregadas outras personagens vindas do mundo da banda desenhada. Nada de novo, nada de interessante, tudo muito dispensável.
Depois, vem João Barreiros com Por Amor à Prole. Trata-se de uma história integrada num universo que Barreiros desenvolveu em alguns contos, incluindo o várias vezes traduzido Noite de Paz, e que se caracteriza por uma Terra com a biosfera enlouquecida e altamente predatória, na qual os humanos que restam fazem o que têm de fazer para sobreviver. Aqui, somos levados a uma exploração agrícola contaminada, onde a agricultora, grávida, desiste de combater as mutações que se acumulam e crescem por todo o lado e de todas as formas, sempre luxuriantes, e sempre com uma adequação de forma à função iminentemente lamarquista. É uma história hiper-violenta, que chega a ser gore, por vezes, mas que não está ao melhor nível deste autor: por um lado, tem alguns problemas com o ritmo, que não é tão consistente como é hábito; por outro lado, o lamarquismo da evolução biológica não está explicado, nem directa, nem indirectamente, o que leva quem tenha alguma formação nas ciências da vida a torcer o nariz. Seja como for, é das melhores histórias do volume.
A penúltima história, Dr. Pequeno Almoço e o Polyban, do britânico radicado em Portugal David Alan Prescott, é um pequeno conto absurdo que tem como única pretensão ser divertido. Conta (?) o dia a dia (?) do Doutor Pequeno Almoço, ditador da República de Lisboa-Loures e... bem... e quase consegue cumprir a sua única pretensão. Quase.
Por fim, Daniel Tércio apresenta Entregue à Bicharada. É outro ponto alto deste volume, e simultaneamente um dos melhores contos de Tércio, passado numa cidade decrépita e praticamente vazia, distópica, entregue literalmente à bicharada, na qual os últimos seres humanos vão sobrevivendo como podem e vão resistindo, teimosamente, ao apelo da fronteira, que neste caso significa a passagem para os mundos virtuais onde tudo é possível.
Uma boa maneira de encerrar uma antologia que é muito prejudicada pela extrema desigualdade dos seus componentes, seja em termos temáticos, seja em termos de qualidade da prosa e dos mundos que são apresentados, seja até em termos de objectivos. Aquilo que tem de realmente bom é suficiente para justificar a leitura. Mas aquilo que tem de mau faz com que não seja possível dar-lhe mais do que três estrelas.
 
PS - Relativamente à questão do título do conto de Gwyneth Jones, o tradutor esclareceu entretanto que ele foi mantido por pedido expresso da autora. Assim já compreendo e aceito essa opção, mesmo que continue a considerar o título não muito adequado para o público português.

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Fronteiras

editado por Maria Augusta e António de Macedo

Simetria

1998

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Efeitos Secundários

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O Limite de Rudzky

Sulphira & Lucyphur

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A Viagem

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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dos autores no E-nigma:

Uma Noite na Periferia do Império, por João Barreiros

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