R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Efeitos Secundários

editado por Maria Augusta e António de Macedo

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 05.08.2003

Efeitos Secundários é a primeira antologia de FC&F editada pela associação Simetria, por ocasião e a propósito dos segundos encontros de FC&F de Cascais. Mas é a segunda antologia temática da FC&F nacional lançada a propósito dos Encontros, seguindo-se à antologia original, Inconsequências na Periferia do Império, que foi editada pela Câmara Municipal de Cascais numa altura em que ainda não havia Simetria.
Trata-se de uma antologia bilingue, em português e em inglês, com os mesmos contos numa e na outra língua. Nove contos de outros tantos autores, acrescidos de um prefácio de Luís Filipe Silva, inspirados, por vezes muito vagamente, no título/tema da antologia: efeitos secundários. Autores portugueses na maioria (6), com um brasileiro, um norte-americano e um inglês radicado em Portugal a internacionalizar um conteúdo que varia imensamente em tema, abordagem e qualidade.
Após o prefácio, breve mas interessante, a ficção arranca com um conto fantástico de Maria de Menezes. Pedagogias Diversificadas que, embora bem escrito, não passa de um ataque sarcástico e exagerado de uma professora experiente a uma certa atitude de desculpabilização das crianças que tem feito escola nas nossas escolas, nos últimos anos. Escrito em tom ligeiro e surrealista, conta a maneira como se tenta resolver o problema posto à instituição escolar por Juvenal, um jovem aluno que vai canibalizando colegas, pessoal discente e pessoal docente, sem que as vítimas sofram com isso mais do que incómodos mais ou menos severos. A professora vê uma perna ser-lhe devorada e irrita-se com o facto - o tom é este. Lido no comprimento de onda certo talvez seja um conto divertido, especialmente para os senhores professores que andam mais fartos das suas "criaturinhas".
Segue-se Efeitos de Maré, uma noveleta em que António de Macedo é igual a si próprio: aparelhos pseudo-científicos de nomes abstrusos, criados por cientistas geniais e incompreendidos (um dos mais velhos chavões de certa FC, muito popular há mais de 50 anos), destinados a resolver os problemas criados primeiro pela civilização tecnológica e depois pelo aparelhómetro-"solução" anterior, vão provocando efeitos secundários cada vez mais devastadores. Apesar da roupagem parecer indicar o contrário, com os seus cientistas, laboratórios, teorias e máquinas estrambólicas, há pouca ou nenhuma ficção científica neste texto que, embora talvez seja o que mais proximamente segue o tema proposto, é dos piores do volume. E o maior. Não é mais que uma fantasia tecnológica bem afastada da credibilidade que a FC procura.
Ligeiramente melhor é Nihil Sine Causa, um conto curto do cidadão britânico radicado em Portugal David Alan Prescott. Conta uma historiazinha mundana em que uma fotografia que não podia existir acaba por destruir um casamento e abrir caminho a outra relação. O elemento fantástico, uma viagem no tempo, está relativamente bem conseguido, pena é que a qualidade da prosa deixe um pouco a desejar. Está bastante bem para um falante não nativo da língua, mas nota-se demasiado que o escritor pensa em inglês.
Logo em seguida vem aquela que é talvez a melhor história do volume, entregue pelas mãos de Luís Filipe Silva. The Rodney King Global Mass Media Artwork é um conto envolvente que gira em torno de uma campanha publicitária invulgar numa Los Angeles do futuro próximo, ainda mal refeita dos motins raciais que se seguiram à ilibação dos polícias envolvidos no espancamento de Rodney King, em 1992. É um conto que convém ler sem muita informação prévia para saborear por completo a sua complexidade e inteligência. Digo apenas que se debruça decididamente sobre o poder dos media e do marketing, entre outros assuntos.
Com a Verdade m'Enganas, de José Xavier Ezequiel, está num patamar intermédio. Sem a qualidade da história que o precede, quer em termos temáticos, quer no manejo das ferramentas da escrita, este conto é, no entanto, interessante. Em tom policial e relativamente cyberpunk, o conto descreve as acções de um assassino profissional que tem um contrato com uma empresa japonesa, a Tsushita, para o assassínio de "Dollys", biobonecas clonadas para funções sexuais, comercializadas na União Europeia pela Tricon, empresa europeia rival dos japoneses.
Logo a seguir chega outro ponto alto sob a forma do conto de João Barreiros Noite de Paz. Descreve um assalto a um determinado local na Lapónia onde uma aparente invasão alienígena liderada pelo Pai Natal (sim, leram bem: pelo Pai Natal... ou pelo menos por uma espécie de Pai Natal) toma conta de todos os pormenores da paisagem, todos os anos, por alturas de Dezembro, distorcendo a realidade, enchendo as florestas do norte da Finlândia de renas, presentes, gnomos e toda a panafrenália natalícia (e assassina), que um comando de pessoal especialmente treinado vai ter de destruir... pelo menos até a praga regressar no ano seguinte. Não é difícil descobrir de onde veio a inspiração ao autor, mas isso pouco importa. O conto é eficiente e está bem concebido e escrito.
Barreiros reaparece no conto curto que se segue, mas agora na qualidade de tradutor de A Piloto, de Joe Haldeman. Uma pequena história agressiva que descreve uma entrevista estúpida a uma mulher que não tem a mínima paciência para tais cretinices mediáticas - ou para o resto da humanidade, já agora. É que ela é piloto de um cargueiro espacial. Ou, por outra, ela é a nave espacial. Só lendo estas quatro páginas para compreender realmente o que aqui se passa. Mais um conto óptimo, que introduziu Haldeman ao público português.
O penúltimo conto chega do Brasil pela mão de Gerson Lodi-Ribeiro. Missão Secundária é uma história espacial clássica. Uma nave, ao regressar de uma longa missão de exploração de um mundo distante onde tinha havido uma civilização tecnológica, que, como a expedição descobre tarde demais, se acabara por suicidar num holocausto planetário, dirige-se a um objectivo secundário a merecer investigação: um wormhole de um tipo especial que pode, eventualmente (e é isso que se pretende saber), servir como atalho para viagens longas pelo espaço. Mas as coisas acabam por não decorrer exactamente como deveriam, como a tripulação começa a descobrir quando encontra um destroço à deriva e o identifica como parte de uma nave de origem terrestre... mas tripulada por uma espécie diferente da nossa. Outro conto interessante, que no entanto talvez beneficiasse se fosse mais escorreito... ou então mais desenvolvido. Assim, parece ao mesmo tempo deixar pontas soltas e caminhos não seguidos em demasia, e perder-se um pouco em detalhes supérfluos para a história que se pretende contar.
O último conto, A Profecia da Água, de Helena Coelho, foi o vencedor do concurso de contos da Simetria desse ano e é nessa qualidade que é incluído neste volume. Somos colocados num Marte bradburyano, onde uma espécie inteligente se vai adaptando à escassez de água até que chegam os humanos, provenientes do seu planeta oceânico, e viajando, portanto, com água em abundância para os padrões marcianos. O conto está razoavelmente bem escrito, mas falha redondamente em termos de enredo: não passa de uma ruminação fraquinha de um tema há muito explorado até à exaustão. Se no tempo de Bradbury, antes das Vikings, ainda se aceitava (e já com alguma dificuldade) que a FC descrevesse velhas civilizações marcianas em lento declínio à míngua de água, especialmente quando essas civilizações eram descritas com a poesia que Bradbury imprimia a tudo o que escrevia, uma história igual escrita em 1997 já não tem perdão. Há muito que a FC ultrapassou essa fase, e as coisas ficam piores ainda quando o argumento se esburaca em falhas lógicas. Não posso dizer quais sem revelar demasiado sobre o conto, mas não é difícil dar com elas. Giram em torno da água.
Numa apreciação geral, o que salta mais à vista é que esta antologia foi contruída ao contrário. Geralmente os organizadores deste tipo de livro procuram seleccionar pontos altos para abrir, e atrair assim a atenção do leitor, e também para fechar, e deixar em quem lê um sentimento de satisfação ao terminar a leitura. Aqui, o que aconteceu foi exactamente o contrário: a abrir e a fechar aparecem os trabalhos mais fracos e os contos mais interessantes surgem no miolo. Abre-se com um "bah", e fecha-se com outro "bah", e isso faz com que os "ahs" do meio percam eficácia e peso na apreciação global que um leitor vulgar irá fazer do que leu.
Ou seja, com alguns contos bastante bons e outros bastante maus, a classificação acaba por ser mediana. Três estrelas.

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Efeitos Secundários

editado por Maria Augusta e António de Macedo

Simetria

1997

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O Limite de Rudzky

Sulphira & Lucyphur

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A Viagem

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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Jorge Candeias - página de autor

dos autores no E-nigma:

Uma Noite na Periferia do Império, por João Barreiros

Pátrias de Chuteiras, por Gerson Lodi-Ribeiro

A Recordação Imóvel, por Luís Filipe Silva