Sulphira & Lucyphur
por António de Macedo
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 20.10.2006
Quem não conhece ainda o peculiar universo de António de Macedo, tem aqui um romance que o apresenta bem. Trata-se de uma science fantasy de contornos místicos que envolve viscondes e viscondessas novecentinas, guardiões do status-quo provenientes de um universo paralelo ao nosso, ou então de uma dimensão transcendente do nosso universo, ou então de um sítio qualquer distante do nosso universo, nunca se chega a perceber lá muito bem, e que encarnam nos tais viscondes e viscondessas novecentinas, um perigo misterioso que une este universo palpável e a tal outra dimensão, enfim, o sortido completo. Umas pitadinhas de Lovecraft aqui, umas rodelas de Eça ou Camilo acoli, carregar bem no romantismo, adicionar espiritismo até formar uma papa espessa, misturar bem e levar ao lume mais escanifobético que for possível arranjar, e eis a receita deste Sulphira & Lucyphur, tal como de boa parte da obra de Macedo. Se bem que este livro talvez seja mais típico do que outros, dado que se integra num conjunto que gira em torno de Khalôm, uma cidade que surge em várias obras de Macedo, não só literárias como também cinematográficas (p. ex.: Os Emissários de Khalôm). Mas aqui e agora falamos de Sulphira & Lucyphur.
Sulphira e Lucyphur, conhecidos na Terra como Carlota, criada de servir, e José António Rebelo da Gama, visconde, respectivamente, são agentes do COPIG, uma complicada mescla de ordem de feitiçaria com polícia interstelar (e se calhar interdimensional?), e têm por missão investigar uma bizarra transmissão, aparentemente oriunda de um tal "asteróide Arys-Zeta-7, pertencente à cintura de asteróides que rodeia como uma nuvem de granizo fosco o sol Achernar de Eridanus". É aqui que a porca torce o rabo, quer em termos de história (porque o tal asteróide se vem a revelar um centro de muitas maldades interdimensionais (ou talvez não?) sob o disfarce de um mosteiro) como em termos de natureza do romance e do que nele fica escrito. Deixem-me explicar este segundo aspecto.
É que a estrela Achernar existe mesmo, e fica mesmo em Eridano. É uma das mais luminosas estrelas do céu terrestre, uma gigante azul de dimensões médias, com cerca de 7 vezes a massa do Sol, situada a 144 anos-luz de distância. Ora, se é usada uma estrela real existente no espaço real, então o palavreado "científico" que é empregue no romance só pode ser encarado como algo de fundamentalmente disparatado. Reparem neste exemplo meio aleatório:
As geodésicas quadridimensionais resultantes da gravidade contrapolar e triconvexa de Arys-Zeta-7, sob o efeito da esfogueteante passagem daqueles dois corpos animados com uma velocidade parafotónica, retesaram-se como redes elásticas, fizeram ressaltar ambas as naves que já estavam a um triz de se desfazer, revestiram-nas de ondas espectrais bariotémnicas e puseram-nas a deslizar, aos retrancos, por sobre a mesma extensão de corais negros onde já se havia despenhado antes o veleiro de Tântria e de Cylene. (p. 82)
Pois, as naves são "veleiros" e o perigo nos planetas (ou "asteróides", pois é assim que são designados aqueles corpos celestes, muito embora possuam atmosferas respiráveis!) é constituído por "corais negros". Algo aqui soa fortemente a velhos livros (ou filmes) de piratas. E sim, o romance está mesmo repleto de expressões como "geodésicas quadridimensionais", "gravidade contrapolar e triconvexa", "esfogueteante", "velocidade parafotónica" ou "ondas espectrais bariotémnicas". O tom é mesmo aquele. E não, não houve naquele parágrafo um único corte. Embora a densidade de palavreado, digamos, "alternativo" não seja sempre aquela, embora seja praticamente inexistente nas partes do romance passadas no século XIX, há muito daquilo em Sulphira & Lucyphur. Muito mais do que seria desejável.
Claro que se o tal "asteróide" estivesse num qualquer universo paralelo (ou perpendicular, ou o que fosse; desde que não fosse neste), em que as leis da física fossem outras, em que os fenómenos mais bizarros fossem possíveis, então muito bem, qualquer coelho que Macedo pudesse tirar da cartola seria um coelho viável, desde que não entrasse em conflito com a coerência interna da história. Poderia achar-se tais exercícios de delírio irrelevantes ou desinteressantes, mas não se lhes podia contestar a validade enquanto artifícios literários. Porém, se o romance é apresentado como sendo ficção científica, e se isto é suposto passar-se no mesmo universo em que eu e você, leitor, estamos vivos e a respirar, então há que afirmar que este romance de ficção científica nada tem, nem mesmo a aparência, mesmo que o livro traga o termo escarrapachado na capa.
Na avaliação deste que vos escreve, uma qualquer obra literária que se tenta fazer passar por aquilo que não é afunda-se a pique, por mais aspectos redentores que possa ter. E Sulphira & Lucyphur até tem alguns. O livro está em geral bem escrito, a história, se fecharmos os olhos aos disparates, e apesar de um certo carácter mastigado, até consegue ter algum interesse e quem conseguir atravessar a floresta de termos tontos acaba por ler uma história de feitiçaria aceitável intercalada com uma outra história aceitável passada na Lisboa do século XIX, uma história de amor entre um nobre inútil e uma criada bem menos subserviente do que seria conveniente para a época (ou até para os dias de hoje), uma história que até passaria perfeitamente sem elemento fantástico nenhum. Na verdade, este livro só ganharia se fosse dividido em dois. As duas histórias paralelas encaixam-se mal uma na outra e, em vez de gerarem uma sinergia, em vez de contribuírem para um todo maior, fazem, pelo contrário, com que o romance perca qualidade. E isto aconteceria mesmo se o palavreado bizarro fosse suprimido ou reduzido a níveis toleráveis, mesmo se alguma ciência real entrasse na receita da parte espacial do romance, mesmo se a história composta fizesse realmente sentido.
Apesar de tudo, os aspectos redentores do romance seriam suficientes para lhe dar algo como três estrelas, caso não se tentasse colar à ficção científica. Mas enquanto FC é simplesmente horrível.
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