R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Vinganças

por Luís Filipe Silva

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 10.10.2003

No fim de Agosto prometi-vos uma crítica a Vinganças para "dentro de um mês ou dois". E cá estou eu agora a cumprir o prometido.
Vinganças é, como certamente já sabem por ter lido a crítica a Cidade da Carne (e se ainda não leram, façam favor de ir lê-la agora e voltar cá depois), a segunda parte da Galxmente, obra de Luís Filipe Silva que foi apresentada como uma duologia mas que é na realidade um romance partido ao meio.
Ou seja, apesar de ser apresentado como tal, o livro Vinganças também não é um romance. Para o ser, falta-lhe a contextualização que se encontra em Cidade da Carne, e exige a leitura daquele livro para poder ser devidamente apreciado. Há muitos acontecimentos em Vinganças que pura e simplesmente não fazem sentido sem toda a informação de Cidade da Carne. Mas a verdade é que em Vinganças há muitos acontecimentos. E isso faz com que, se for inteiramente obrigatório ler um dos dois livros sem o outro, seja então melhor ler este.
A realidade, no entanto, é que Galxmente é um romance único que deveria ter sido publicado num volume apenas. E deve ser analisado como tal.
E que tal é o romance?
Bastante bom. Luís Filipe Silva cria um universo complexo que se encaixa bem nas tendências da FC contemporânea ao seu romance e, descontando-se o percalço constituído pelos dois livros, desenvolve-o bem. Encarando a história como um todo, a introdução é do tamanho certo para dar ao leitor toda a informação necessária para apreciar a acção da segunda parte, e chegado aí, o leitor fica preso à história.
Os acontecimentos do fim de Cidade da Carne - eles próprios uma vingança que antecipa a razão de ser do título do segundo volume - precipitam uma cascata de violência entre os padrões e os seres humanos tradicionais. No final de Cidade da Carne, a destruição da cidade e o assassínio de milhares de padrões são uma vingança exercida pelos humanos de carne (os "inconformados"), mortais, sobre os padrões imortais, por terem sido criados e mantidos como fonte de deleite para estes, que vivem fascinados pelo espectáculo da mortalidade.
Já em Vinganças, acontece a retaliação, com o assassínio, pelos padrões, de todos os seres humanos de carne que se encontrassem sob o seu controlo. O único que se salva é o criador de senso-dramas Carlnen, raptado pelos inconformados com auxílio da facção de padrões que pretende subverter a Galxmente. Os elementos desta facção também são perseguidos pelos demais padrões e obrigados a fugir ou a sofrer uma dissociação de personalidades, aquilo que os padrões têm de mais próximo da morte.
A última e final vingança acontece quando os Inconformados que sobreviveram ao ataque e à retaliação decidem tentar destruir a Galxmente. Não vos direi nem como nem se eles são ou não bem sucedidos, para não vos estragar a descoberta. Falar-vos-ei apenas de uma falha da história, que até pode ser que não seja falha mas sim uma ponta solta deixada propositadamente para justificar uma continuação: nunca chega a ser explicado o que leva um grupo de padrões a colaborar na tentativa de destruir a Galxmente. Isto é: ao leitor é dito que os padrões dissidentes são movidos pela ideia de que é necessário criar instabilidade para que a Galxmente continue a evoluir, para que saia do seu estado de estagnação. Mas uma coisa é a instabilidade, outra bem diferente é a destruição da Galxmente. Esta é puro suicídio para qualquer personalidade electrónica e estas, com o apurado sentido de auto-preservação que é apanágio de qualquer imortal que se preze (e há vários exemplos desse sentido ao longo da história), não são propriamente candidatas ao suicídio. Que se passa? Não é compreensível.
(E por falar em pontas soltas e/ou potenciais regressos a este universo, há algumas páginas no início de Vinganças que são ocupadas com a descrição de um senso-drama de Carlnen, numa autêntica sinopse de romance: uma space-opera circular. Talvez tivesse algum interesse pegar na ideia e desenvolvê-la...)
Regressando aos aspectos formais da escrita, o texto é um pouco prejudicado por algumas falhas no português, disseminadas um pouco por todo o livro, que na sua maior parte podem dever-se a deficiências de revisão, mas em que por vezes se sente uma nítida aragem de língua inglesa. Mas fora esses pequenos detalhes, o texto é bom, escorreito e lê-se com agrado.
Quanto ao tema, a reflexão sobre onde se situam os limites do humano e sobre se seremos nós e os nossos descendentes algum dia capazes de aceitar o nosso dissemelhante, não podia estar mais na ordem do dia, mesmo dez anos depois da publicação do romance de Luís Filipe SIlva.
Tudo isto somado faz com que Galxmente seja um dos dois ou três bons romances da FC portuguesa. Apesar de muito prejudicado pela forma como foi publicado, merece, sem dúvida, as quatro estrelas.

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Vinganças

por Luís Filipe Silva

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 161

1993

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