Cidade da Carne
por Luís Filipe Silva
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 23.08.2003
Luís Filipe Silva, sempre que lhe dão uma oportunidade, queixa-se amargamente da editora que lhe publicou Cidade da Carne e Vinganças por o ter obrigado a partir em dois o romance que planeou e escreveu enquanto romance único e uno e a que planeava dar o título de A Galxmente. E tem razão.
Com efeito, quem pega em Cidade da Carne com o intuito de ler um romance de fio a pavio, é bom que se prepare para apanhar uma desilusão. Cidade da Carne é apenas a primeira parte de um romance mais vasto, sujeita a alguns "remendos" para resultar minimamente enquanto livro independente, mas claramente deficitária em termos da estrutura e do desenvolvimento que seriam de esperar de um livro com 165 páginas. A introdução ao mundo que Luís Filipe Silva imagina e às suas personagens prolonga-se durante demasiadas páginas, e o desfecho final, pelo contrário, é simultaneamente abrupto e incompleto, fazendo com que o todo se apresente muito desequilibrado.
Não, decididamente, Cidade da Carne não é um romance: é um primeiro volume. E como tal não deve ser lido sem o segundo volume, Vinganças.
A culpa não é de Luís Filipe Silva, evidentemente: é da Caminho. Foram pressões editoriais, uma ideia de mercado que, na altura, desaconselhava a publicação de romances de FC de cerca de 350 páginas, que levaram a que a edição fosse feita assim. Pode-se compreender o dilema da editora, confrontada com as suas realidades comerciais, mas o que é certo é que em termos artísticos esta opção foi quase criminosa.
Mas, e quanto ao sumo? Que contém esta primeira parte?
A ideia de A Galxmente é simples. Num futuro mais ou menos longínquo há duas espécies de pessoas: as feitas de carne e osso, prisioneiras dos seus corpos, sujeitas à mortalidade dos seres biológicos, e os "padrões", individualidades virtuais criadas nos circuitos electrónicos de uma mente planetária por sobreposição de características básicas, que procuram mostrar-se dignas para serem incorporadas na matriz, enriquecendo com a sua experiência e características próprias a personalidade múltipla mas única da Galxmente. Estes padrões podem encarnar em corpos, humanos ou não, fabricados especialmente para o efeito, mas não ficam presos deles: têm a capacidade de se transferir instantaneamente para a rede, para outro corpo ou para qualquer sistema cibernético, graças a um chip que é implantado nos cérebros. Assim, os padrões são potencialmente imortais. E, por isso mesmo, têm um fascínio mórbido pela morte.
Cidade da Carne serve, basicamente, para nos explicar tudo isto, com abundância de pormenores e de cenas bem imaginadas e bem construídas, e o seu desenlace dá-se precisamente quando o principal conflito do romance é apresentado: um padrão particularmente talentoso chamado Tom acha que a Galxmente está estagnada e resolve agir. Como? Leiam o livro.
Ou então esperem pela crítica a Vinganças, que deverá aparecer no E-nigma daqui um mês ou dois.
Entretanto, ficam com a informação de que em termos de construção de um mundo, esta primeira parte de A Galxmente é do melhor que a FC portuguesa produziu. A qualidade é realçada por uma prosa escorreita e bem enquadrada, apesar de uma ou outra falha, aqui e ali, a denotar mais leituras em inglês do que em português. E tem uma coisa que a maior parte da nossa púdica FC não tem: sexo. O Palácio dos Prazeres, que o autor imagina e descreve com abundância de pormenores (embora, estou certo, muito mais haveria a dizer acerca dele), é muito arrojado para o que é hábito ler-se em Portugal, e é um motivo acrescido de interesse para o livro. Pelo menos para quem se interessa por essas coisas.
Resumindo: Cidade da Carne não é um bom livro. Mas é uma excelente primeira parte.
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