R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Verdadeira Invasão dos Marcianos

por João Barreiros

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 07.07.2007

Em 1993, quando foi publicada pela Caminho a antologia O Atlântico tem Duas Margens, houve uma história que sobressaiu em quase todas as apreciações que foram feitas ao livro graças a uma premissa inteligente e instigante e a uma concretização impecável. Tratava-se de uma noveleta escrita num ritmo alucinante, em que se contava a história de um tal Dr. Herbert Goodfellow, dono de um cérebro particularmente dotado para manipular as leis que regem o mundo físico mas desde muito jovem inadaptado às restrições e convenções impostas à vida social e à produção e difusão artística por uma espécie de avídeos alienígenas inteligentes, os priiiiiks.
Herbert Goodfellow delicia-se com literatura proibida e não tem a mais pequena paciência para a alta cultura que os priiiiiks promovem como a única cultura válida. À música de Mozart, Herbert prefere um livro de banda desenhada cheio de criaturas vindas dos mais obscuros recantos da imaginação; à bem comportada literatura oficial, Herbert contrapõe livrinhos e revistas de ficção científica, cheios de histórias movimentadas em que heróis humanos combatem e levam de vencida terríveis monstros alienígenas de olhos esbugalhados.
Herbert é, portanto, um rebelde. E quem vir nele um alter ego do autor do livro, quem vir nas suas preferências e atitudes o decalque da luta de décadas de Barreiros pela sua visão do que é e/ou deveria ser a ficção científica, a arte mainstream e as relações entre uma e outra, não estará muito longe da realidade. Embora Herbert Goodfellow tenha por base um outro Herbert, mais conhecido pelas iniciais H. e G. e pelo apelido Wells, é impossível deixar de ver nele fortes traços do autor deste livro. Para Herbert e para Barreiros, o que é bem comportado e socialmente aceite é uma grande chatice sem sal nem cor, e as coisas que verdadeiramente valem a pena devem ter em si a semente do incómodo. Mesmo que para isso o politicamente incorrecto seja erigido em bandeira e (bastante mais no caso de Goodfellow do que no de Barreiros, porque afinal de contas não se trata de um retrato fiel mas sim de uma auto-caricatura, que ainda por cima passa pela estação intermédia de Wells) a xenofobia seja um valor determinante da visão do mundo e do percurso de vida. Goodfellow é profundamente xenófobo, e num mundo de conformistas, que tratam os alienígenas como benfeitores paternais que teriam posto fim, por pura bondade, aos ciclos de violência que assolam a humanidade, ele é o único a usar o ódio xenofóbico como combustível para uma desconfiança que o vai levar a descobrir sobre os priiiiiks algumas coisas que os avídeos gostariam de manter secretas. E é esse mesmo ódio e essa mesma xenofobia que o leva a pôr mãos à obra da sua vida: a criação de um universo alternativo no qual a invasão marciana descrita por Wells, de novo ele, aconteceu de facto, a fim de, segundo afirma, levar a humanidade a estar preparada para combater os priiiiiks quando eles chegassem. Mas na sociedade assim criada, a personalidade inadaptada de Herbert (de um outro Herbert) leva-o a percorrer um caminho bem diverso.
É uma história que por baixo da camada externa de conto de acção tem várias outras, algumas perturbadoras, politicamente mas não só, outras irónicas e até auto-irónicas. E é uma história que, como já foi dito acima, tem uma concretização da ideia-base impecável. Excelente.
Anos mais tarde, em 2001, em parte acicatado pela antologia marciana que o E-nigma organizou, Barreiros resolve escrever uma nova história neste universo, que vem a publicar em 2004 numa colectânea que reúne as duas. De novo, a ideia é soberba: que aconteceria se H. G. Wells, Júlio Verne e Edgar Rice Burroughs, acompanhados pelas respectivas criações, tornadas reais pelos actos de Goodfellow, se juntassem enquanto parte de uma força expedicionária terrestre enviada a Marte (em cápsulas acanhadas propulsionadas com um misto de tecnologia vitoriana e daquilo que se teria aprendido a partir da tecnologia marciana) pouco depois da invasão dos pequenos polvos negros, a fim de procurar e destruir a fonte dessa invasão?
Pós-moderna quanto baste, esta premissa dá pano para mangas e é de molde a atrair a atenção de muita gente habitualmente alheia às produções de género. Se bem que Burroughs esteja muito ligado a produtos de série B e a pulps e não seja particularmente respeitado enquanto escritor, Verne e Wells fazem parte do fundo cultural comum da humanidade e são lidos quer por pessoas cujos gostos as atraem em geral para a ficção científica, quer por pessoas que não costumam consumir FC ou literatura fantástica. Assim, juntar numa mesma história esses dois autores e ainda Moreau, célebre personagem criada por Wells, e o sargento John Carter, personagem proveniente das histórias de Burroughs sobre Barsoom, transformadas em "carne e osso" no mundo alternativo de Goodfellow, poderia ser quase irresistível para muitos apreciadores de ficção literária menos habituados às convenções da FC mas interessados em exercícios metaficcionais como este.
Wells e Verne não se dão nada bem, e é por entre as suas constantes disputas e provocações que o grupo, depois de ser atingido pelas defesas marcianas e desviado da rota e de se despenhar numa cratera próxima do pólo sul, se vai pôr a explorar as redondezas.
Mas estas são um enorme puzzle. Marcianos — os marcianos de A Guerra dos Mundos, semelhantes a polvos — jazem mortos aos milhares por entre restos semi-destruídos da sua maquinaria. Um modelo detalhado de Londres está dividido em zonas coloridas, que correspondem a áreas de intensidade de danos na Londres real, durante a invasão marciana. "Qualquer coisa semelhante a uma avestruz com pescoço de serpente", que quem se lembrar da outra história reconhece como um priiiiik, vive ainda até ser feita em pedacinhos pelos disparos xenofóbicos de Carter, Burroughs e Moreau. Perto dali, as defesas anti-aéreas de Marte continuam a disparar. E a um canto, uma gigantesca pirâmide espera os cinco exploradores, escondendo os seus mistérios em salas que irão sendo descobertas uma a uma.
Tudo pesado, a novela pouco mais é do que essa viagem de descoberta do que afinal terá acontecido naquele planeta. Ignorantes de tudo o que se relaciona com Goodfellow, ignorantes de quem foram na realidade do nosso mundo, sabendo apenas das suas vidas no mundo alterado em que personagens que nunca chegaram a criar são pessoas de carne e osso, Wells, Verne, Burroughs e os dois imagos vão de surpresa em surpresa à medida que vão encontrando, numa pirâmide em que tudo parece ter milhares de anos de idade, sinais de uma modernidade que desconhecem, letreiros em inglês... e até sinais de si próprios, ou pelo menos de uma outra versão de si próprios.
Infelizmente, a concretização deste conjunto de óptimas ideias não está ao nível da da outra história. Onde aquela era nervosa e irrequieta, é esta empastelada por gags sucessivos e cansativos acerca da rivalidade dos dois escritores e da falta de jeito de um ou de outro (mas especialmente de Verne, mais adaptado ao sofá) para uma exploração com aquelas características; onde naquela tudo se parecia ajustar de forma perfeita, é esta bastante prejudicada por aparentes falhas de revisão que resultam em gralhas, passagens escritas num português menos que óptimo e inconsistências no decorrer da história. O mais claro exemplo disto é o que se segue à morte de Edgar Rice Burroughs: como era do seu criador que John Carter retirava a sua energia vital, após a morte daquele o sargento fica adoentado e vai enfraquecendo. A páginas tantas, está à beira do desfalecimento, quase demasiado fraco para prosseguir... mas na página seguinte já está de novo activo, intrépido e racista, pronto a incentivar os seus companheiros ao prosseguimento da exploração.
Tivesse a concretização de Não Estamos Divertidos... acompanhado as suas premissas e o nível de qualidade da noveleta que dá título ao livro e que o fecha, estaríamos perante uma obra maior da ficção científica portuguesa. Mas infelizmente não é isso que acontece. Não Estamos Divertidos... é uma história apenas mediana, com muito de mais do mesmo, sem o fulgor habitual nas histórias de João Barreiros. Mesmo assim, a apreciação global do volume não pode deixar de ser bastante positiva até porque este livro é, certamente, de todos os livros de Barreiros, aquele que poderá apelar a um público mais vasto, ainda que para o compreender na totalidade é muito aconselhável conhecer bem a história da FC. Pelo menos nisso, Barreiros é aqui igual a si próprio.
★★★★

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A Verdadeira Invasão dos Marcianos

por João Barreiros

Editorial Presença

Colecção Viajantes no Tempo, nº 16

2004

Críticas a outras obras de João Barreiros

Duas Fábulas Tecnocráticas

O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias

Terrarium

Uma Noite na Periferia do Império

Barreiros prefaciou:

O Planeta das Traseiras

Artigos de João Barreiros

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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