Duas Fábulas Tecnocráticas
por João Barreiros
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 24.01.2004
Mais de uma década antes de O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias, o primeiro livro "oficial" de João Barreiros e meia década antes de João Aniceto ter inaugurado a edição de ficção científica de língua portuguesa na Caminho com o seu romance premiado, Os Caminhos Nunca Acabam, saía para as mãos de uma selecta colecção de amigos, conhecidos e, provavelmente, alguns desconhecidos, uma ediçãozinha de autor com 34 páginas, feitas numa tipografia situada na mui distópica Reboleira Sul, embrulhadas numa capa pavorosa a preto e branco e divididas em dois contos: O Funcionário e O Sindroma do Pai Natal.
Duas Fábulas Tecnocráticas, assim se chama o livrinho, marcam a modesta estreia de João Barreiros na FC portuguesa. Modesta porque a edição é mesmo muito modesta, praticamente ao nível do que hoje qualquer um poderia fazer em casa com um computador e uma impressora barata. Modesta também porque o estilo do autor ainda não estava, nessa época, inteiramente definido. E modesta, ainda, porque passou quase completamente despercebida.
Estes dois contos, no entanto, são leitura muito interessante, quer para quem seguiu a trajectória do autor nos anos 80 e, principalmente, 90, quer para quem ainda não leu nada dele e quer ficar com uma ideia esquemática daquilo que pode encontrar nos escritos de Barreiros.
É que nestes contos vamos já encontrar, embora em forma ainda algo bruta, muito do Barreiros posterior. Em O Funcionário encontramos violência extrema em cenário distópico e urbano, ao seguirmos o percurso de um assassino psicopático que mata mulheres grávidas num ritmo frenético, sem que se saiba bem por que razão não é apanhado. A tentativa de chocar o leitor é deliberada e propositada, como em toda a obra subsequente do autor. Já se nota a tendência para a referenciação subtil de toda uma atmosfera cultural onde Barreiros bebe, na qual a ficção científica, da mais intelectual à mais trash, é central. Os diálogos já têm a fluidez e carácter genuíno que são imagem de marca do autor. Etc.
No segundo conto, além da hiperviolência e demais características de O Funcionário, vamos encontrar um tema aparentemente obsessivo em João Barreiros: a desconstrução subversiva de todos os mitos de infância. Neste conto, é o Pai Natal o sacrificado (à semelhança de um outro conto, Noite de Paz, curiosamente o conto de Barreiros que foi mais vezes traduzido e publicado lá fora). De novo (sempre) em cenário catastrófico, de uma distopia hiperviolenta e total, O Sindroma do Pai Natal põe a nu a crueldade das crianças, atacando de passagem, mas sem contemplações, as pedagogias "boazinhas" que tratam os miúdos como seres fundamentalmente doces, por entre "carrinhas de eutanásia" enlouquecidas (a fazer lembrar o cliché das carrinhas de gelados dos filmes de terror série B) e corporações sem mais escrúpulos do que os necessários para salvar a própria pele.
Apesar de ser Barreiros em bruto, apesar de a edição, nas suas características físicas, ser simplesmente horrível, apesar de necessitar de uma revisão profissional, o conteúdo deste livrinho consegue ser melhor do que muita da FC portuguesa publicada desde então. E isto não deixa de ter algo de deprimente.
Num livro digno de tal nome, revistas condignamente, estas duas histórias levariam quatro estrelas nas calmas. Assim, levam três.
Gostou deste texto? Ajude-nos a oferecer-lhe mais!
|