R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Teia

por João Aniceto

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 05.07.2007

No conjunto da obra de João Aniceto, A Teia é um romance atípico. Não encontramos aqui grandes explorações espaciais, planetas distantes, naves-geração ou psicómetras. Não encontramos os amanhãs que cantam que tanto engulho causam a uma parte importante dos autores e leitores nacionais de ficção científica. Não encontramos o misto de FC soviética com Bradbury e temas e abordagens new wave que costumavam ser as águas em que Aniceto se movia. Longe disso.
A Teia é um romance sombrio, marcado por traços ciberpunk (embora sem nada de "ciber") e por uma paranóia quase dickiana, num mundo — ou numa cidade — onde o poder se concentra por inteiro nas mãos de quatro megacorporações desprovidas de ética ou escrúpulos. Megacorporações que apesar de o serem são divididas por linhas étnicas e raciais, e mantém entre si uma guerra de baixa intensidade mas contínua, ao estilo mafioso. Uma cidade — ou um mundo — poluída, tóxica, que se revela profundamente disfuncional e decadente por trás da máscara brilhante das zonas habitadas pelos "lavadinhos", aqueles que fazem parte do sistema, naquelas zonas em ruínas por onde se escondem os "ratos", clandestinos que habitam em túneis abandonados e nas ruínas mais arruinadas da cidade, eternamente perseguidos por "matandróides" construídos e controlados pelas corporações. Párias. E também rebeldes.
É neste mundo que vive Austin, um lavadinho agente de segurança de uma das corporações, que vai ser destacado para investigar um atentado e começa a descobrir algumas peças de um puzzle que não consegue compreender, peças essas que não lhe deviam chegar ao conhecimento. Como as regras do universo deste romance tornam inevitável, esse facto não é propriamente saudável para alguém que quer manter a cabeça colada ao pescoço, e Austin vê-se obrigado a passar à clandestinidade, numa longa fuga que o vai levar a descobrir o mundo subterrâneo.
Todo o romance é assombrado por um pessimismo profundamente distópico, mesmo que no meio de todas as suas atribulações, no meio de todas as suas perdas e derrotas, Austin acabe por encontrar o amor. Este toque do humanismo típico de Aniceto é o principal ponto de contacto com as suas obras anteriores, mas não é suficiente para mudar o ambiente da história, bem pelo contrário.
Não só por ser o mais recente, mas também por muito do que ficou dito acima, A Teia é, também, o mais actual dos romances deste autor, o que não deixa de ser uma observação deprimente sobre o estado do planeta no principio do vigésimo primeiro século. Mas não é um bom romance. Falta-lhe para isso inovação, pois quer o tema, quer a abordagem, foram muito típicos da ficção científica dos anos 80 (e com raízes mais atrás), de tal forma que até o cinema, que em geral é bem mais lento a aproveitar as ideias da FC do que a literatura, se serviu do mesmo tipo de abordagens vários anos antes da publicação d'A Teia. Só para dar um exemplo, o primeiro filme da série Robocop, que em boa medida se desenrola no mesmo tipo de ambiente e tem algumas das mesmas preocupações de A Teia, data de 1987. A Teia saiu no ano da FC portuguesa: 1993.
Todos sabemos que a inovação não é tudo e que por vezes se fazem obras excelentes com base em clichés. Mas para isso é necessário trabalhá-los com grande qualidade, e também não é o que acontece n'A Teia. Falta a este livro um fio condutor mais firme, um enredo mais interessante do que as peripécias da fuga de Austin e daquilo que vai descobrindo ao longo dessa fuga. Falta-lhe um estilo mais condizente com o tema, um português tão trepidante e violento como aquela sociedade. Não que seja fundamental, muito menos obrigatório, mas não deixa de ser ilustrativo da desadequação entre estilo e tema que o calão mais violento que aparece nos diálogos seja composto por palavras como "tipo".
Seja como for, é um dos melhores trabalhos de Aniceto, o que é o mesmo que dizer, dada a escassez de romances de verdadeira ficção científica que se escreveram em Portugal até hoje, um dos melhores desses romances. Poderá não passar do razoável, mas lê-se bem, deve ler-se por quem quiser conhecer a FC portuguesa e recebe nota positiva:
★★★

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A Teia

por João Aniceto

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 157

1993

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