Prisioneiros do Poder
por Arkadi e Boris Strugatski
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 03.12.2002
republicada em 14.10.2003
Maxim Kammerer, solitário explorador terrestre, despenha-se com a sua nave num planeta distante, humano-compatível e desconhecido, transformando-se num novo Robinson Crusoe da era espacial. Ou melhor, em mais um dos muitos Robinsons que apareceram na ficção científica mundial ao longo de todo o século XX. Mas será que esta ilha deserta em particular tem o seu sexta-feira?
Rapidamente se descobre que sim. Aliás, rapidamente se descobre que o planeta não só tem sexta-feiras como está mesmo enxameado deles. Homens iguais a nós (o que é comum encontrar-se nos livros dos irmãos Strugatski), embora talvez um pouco menos vigorosos e muito mais doentes da cabeça.
Sim, a população do planeta sem nome onde Maxim acaba de aterrar revela-se em breve completamente louca. Aterrar é como quem diz, também. Porque quando a nave é destruída numa gigantesca explosão (nuclear pela certa), começamos a aperceber-nos daquilo que em breve se tornará óbvio: Maxim não se limitou a despenhar-se: foi abatido.
Ironicamente, quando os indígenas capturam Maxim consideram-no louco (parece haver uma boa percentagem da população clinicamente louca, mesmo para os padrões locais), mas no entanto acabam por integrá-lo no exército devido às suas capacidades físicas, extraordinárias para o que é comum ver-se no planeta. Claro que o tomam por habitante do planeta, eventualmente estrangeiro, ou amnésico, o que também explica a nave que, para eles, é um aparelho proveniente de um país estrangeiro.
Um país estrangeiro com o qual estão em guerra.
A partir daí, o livro conta a vida de Kammerer e a sua integração, cheia de dificuldades e mal-entendidos, na sociedade local. Uma sociedade ultra-militarizada, em guerra permanente contra os vizinhos, num planeta contaminado por todos os tipos de resíduos radioactivos de guerras passadas e presentes, tornando vastas zonas inabitáveis e praticamente impossíveis de visitar, e no qual vivem povos misteriosos, talvez resultado de mutações induzidas pelas radiações.
Quanto aos novos concidadãos de Kammerer, parecem seres humanos perfeitos, se bem que algo frágeis, mas têm a particularidade de serem acometidos por ataques periódicos de fúria assassina e entusiasmo patriótico. Ou então de lancinantes dores de cabeça.
Kammerer vai percorrer um trajecto sinuoso através desta sociedade bizarra, e mais não digo para não estragar o prazer da descoberta na leitura.
Digo apenas que Prisioneiros do Poder (a que o título original russo chama algo muitíssimo mais irónico e adequado: Obitaemiy Ostrov, ou seja, A Ilha Habitável) é um implacável ataque à instituição militar e à própria filosofia de vida e de organização social que leva ao militarismo, um implacável ataque às sociedades totalitárias compostas por uma elite dirigente e uma plebe ignorante e colaborante, uma reflexão amarga acerca da natureza humana. Um óptimo livro de ficção científica, em suma, mesmo que parta de pressupostos não muito científicos (a velha história da humanidade omnipresente no Universo, acima de tudo) e sem grande originalidade.
A tradução ajuda. Mesmo apesar de se tratar de uma tradução de uma tradução, o texto é quase desprovido daquelas asneiradas que infelizmente são tão comuns nas traduções de FC em Portugal. Sem ser excelente, é uma boa tradução, o que eleva todo o volume até às quatro estrelas.
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