R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Pedra de Lúcifer

por Daniel Tércio

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 30.10.2003

Pedra de Lúcifer, com as suas 322 páginas, é a obra de maior vulto de Daniel Tércio, quer apenas segundo o critério puramente numérico da extensão, quer também segundo outros critérios menos objectivos, como a elaboração do romance ou a ambição que terá determinado a sua concretização.
É sabido que Tércio é, entre os escritores portugueses ligados — ainda que por vezes marginalmente — à ficção científica, um dos que apresentam um texto mais cuidado, ou seja, um dos melhores estilistas. É também sabido, quer por quem leu as suas obras, quer por quem apenas leu críticas a O Demónio de Maxwell e a A Vocação do Círculo, que as suas preocupações temáticas giram fundamentalmente em torno de alternativas. Nos primeiros livros, essas alternativas eram-no principalmente no espaço, com A Vocação do Círculo a descrever uma viagem por universos alternativos, e vários dos contos de O Demónio de Maxwell a debruçarem-se sobre assuntos semelhantes. Em Pedra de Lúcifer, no entanto, e pelo menos segundo Tércio, trata-se de outro tipo de alternativa: a histórica.
O autor escreve, no prefácio:
Do ponto de vista ficcional, a consideração de outros passados pode ser bastante estimulante. Chama-se a isto história alternativa. [...] A narrativa que se segue pode ser incluída dentro desse género. É pois uma história alternativa, construída não sobre um diferente desfecho de um acontecimento conhecido, mas sim sobre um facto insólito, tanto quanto se sabe, falso.
Esse facto falso, desvenda Tércio pouco depois, é a impregnação da Terra com "nanomáquinas do conhecimento" por volta do ano 1000 da era cristã.
Há muitas definições possíveis para história alternativa, e a de Tércio é uma delas, mas devo dizer que o meu conceito do termo não engloba trabalhos deste género (haverá verdadeira história alternativa sem um ponto de divergência "palpável"?), até porque o romance propriamente dito não parece passar-se numa sequência credível para aquilo que o nosso mundo realmente era na baixa Idade Média. Falta ao romance uma ligação com algo de concreto da nossa história real que nos dê uma noção sobre onde e como terão divergido os ramos da árvore histórica, as alternativas. Tanto assim é que o autor sentiu necessidade de nos explicar num prefácio as suas ideias sobre o romance e sobre o que estará subjacente a ele.
Parece-me, portanto, e com absoluta consciência de que esta opinião é discutível, que talvez seja mais correcto evitar englobar este trabalho na história alternativa.
Seja como for, haja ou não história alternativa aqui, o resultado é mais um dos mundos alternativos tão do agrado de Tércio. E um mundo riquíssimo.
A história passa-se mais ou menos na actualidade. Mas naquele mundo, a actualidade é bem diferente daquela que conhecemos. Em vez de vastas metrópoles, habitadas por milhões de pessoas, centros da economia de países que por vezes atingem o bilião de habitantes, encontramos aqui um mundo despovoado, centrado em cidades tipicamente medievais; Em vez da tecnologia que nos rodeia, no mundo alternativo de Pedra de Lúcifer é a religião que impera, uma chamada Religião das Relíquias, derivada de partes do cristianismo antigo, cujos dogmas se revelaram ainda mais inamovíveis que os das religiões na nossa realidade, fazendo com que uma Idade Média alterada se prolongasse até ao século XX, alimentada pelo "Cristal" — os últimos restos do fluido infectado de nanomáquinas que terá sido deixado no planeta um milénio antes — e pela repressão sangrenta de qualquer dissidência, por intermédio de uma polícia religiosa (a Ordem do Sangue) em tudo semelhante à Inquisição católica.
E no entanto, uma espécie de Renascença vai surgindo, para apimentar mais a história, trazendo consigo o espírito científico e o experimentalismo, centrada no Norte da Europa (numa cidade chamada Nova Rouen), e estendendo tentáculos um pouco por todo o continente, ajudada por um considerável enfraquecimento do poder do Cristal nas últimas décadas.
Como mandam as regras da boa escrita de romances, os protagonistas deste vão ser simultaneamente actores e espectadores de toda a turbulência do tempo, e é com eles que vamos percorrer toda a Europa Ocidental, enquanto se vai desenrolando uma batalha feroz entre a emergente sociedade burguesa de artesãos proto-científicos e a elite tradicional, composta pelas cúpulas da Religião das Relíquias e seus acólitos.
Pedra de Lúcifer é um romance complexo, muito bem escrito, com uma ambientação superiormente descrita e muito bem desenvolvido. É, sem sombra de dúvida, a melhor obra de Daniel Tércio, e um dos melhores trabalhos da ficção científica portuguesa. Mas tem um enorme mas, que o prejudica imenso: o fim.
Já disse na crítica a O Demónio de Maxwell que Tércio falha principalmente nas maneiras que arranja para terminar as suas obras. E tenho de repetir isso aqui. Senão vejamos:
Ao longo de todo o romance, o leitor vai acompanhando a evolução das personagens principais e da sociedade como um todo, que vão a pouco e pouco abandonando o misticismo retrógrado da Religião das Relíquias para abraçar uma mundovisão mais racionalista e mais moderna, mais de acordo com a realidade do próprio romance. Mas, de repente, eis que essas mesmas personagens recebem uma espécie de chamamento para se reunirem num simulacro de Távola Redonda, composta por "corações puros" que vão receber ensinamentos de unicórnios envoltos em luz branca. Será que o autor não reparou que a bota não tem nada a ver com a perdigota? Que este final envolto em misticismo new age barato iria estragar todo o romance, tanto pela sua intrusão numa história que apontava claramente, ao longo de 250 páginas, para a supremacia ideológica do racionalismo sobre as trevas místicas, como pela pura banalidade do conceito, enfiado à pressão numa história que até ali estava a ser original?
Pelos vistos não, e é uma grande pena. Porque se não fosse aquele final, Tércio teria escrito o melhor ou o segundo melhor romance português de FC de sempre, e um romance que poderia inclusive ser "o tal" romance que há quem espere há muito tempo, capaz de atrair para a FC portuguesa gente habitualmente alheada do género, ou do género em português. Algo que mereceria cinco estrelas deste leitor. Mas assim, chega apenas às quatro, e com alguma dificuldade...

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Pedra de Lúcifer

por Daniel Tércio

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 185

1998

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A Vocação do Círculo

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2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

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e escreveu a introdução e os contos:

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