R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

O Demónio de Maxwell

por Daniel Tércio

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 28.06.2002

republicada em 10.06.2003

O Demónio de Maxwell, colectânea de 10 contos (alguns deles publicados anteriormente em várias revistas) e um artigo, é o livro que Daniel Tércio fez seguir, nove anos mais tarde, a A Vocação do Círculo, o seu livro de estreia, que recebeu uma recomendação de publicação por parte do júri do primeiro Prémio Caminho de Ficção Científica.
A Vocação do Círculo era um livro de FC, ainda que de uma FC algo fronteiriça, sobre universos paralelos. O Demónio de Maxwell, por seu lado, não é nem pretende ser um livro de ficção científica. Navega, isso sim, pelas águas do fantástico mais aproximado à "weird fiction", por vezes piscando o olho à FC, mas sem grande convicção ou insistência.
A Vocação do Círculo é uma referência incontornável para falar d'O Demónio de Maxwell principalmente porque o conto que abre e intitula este livro faz uma espécie de ponte com o livro anterior, ponte essa que continua em outros contos. Maxwell é um banal caixeiro-viajante que recebe a visita de um estranho topógrafo amador, proveniente de um universo paralelo (ou transversal?) que segue regras muito diferentes das do nosso, e que procura confusamente compreender a topografia do ou dos espaços.
Em O Tempo da Utopia ou Lembrança de uma Sociedade Pós-Nuclear, o tema tem mais uma vez a ver com distorções do espaço e do tempo. Um explorador de Quinhentos é deixado na América quando as naus regressam a Lisboa, e acaba por descobrir uma ilha chamada Utopia, presa algures fora do tempo, ou talvez no futuro, ou talvez não. Tércio faz aqui uma releitura privativa da célebre ilha de Thomas Moore, e "explica" como Moore teria tido acesso à informação sobre Utopia.
Loop, o conto seguinte, é provavelmente aquele que mais se aproxima da FC clássica, mas é um conto sem grande identidade. De início parece uma coisa, a meio transforma-se noutra, nos últimos dois parágrafos, ou seja, no epílogo, acaba por tornar-se numa terceira coisa totalmente diferente. É, em suma, um conto bizarro e não particularmente eficiente, se bem que bem escrito.
Com O Presente dos Anjos, Tércio sai decididamente da FC para entrar numa espécie de ficção mitológica. A história praticamente começa com a descida dos anjos à Terra em 1998, e o fio condutor que segue limita-se praticamente à "descoberta" de que, afinal de contas, as mitologias estavam todas certas, pelo menos nos traços gerais. O presente dos anjos é um aparelho mágico, chamado "lanterna d'alma", que indica aos moribundos o caminho para o Céu, entre outras usos secundários que lhe podem ser dados. Céu e Inferno, almas e anjos, a cristandade está toda neste conto.
(A) B (C) é mais um conto que não fica na memória, e que depende do insólito para funcionar. Mais uma vez, a qualidade da escrita supera em muito a qualidade da história que é contada. E, mais uma vez, há a sugestão de universos paralelos (que quase parecem uma obsessão na obra de Tércio)...
O insólito é ainda a premissa de Super-Herói, conto com algumas ressonâncias de conto juvenil, em que fatos de super-heróis transformam quem os veste em verdadeiros super-heróis. Ideal para quem sonha ser o Homem Aranha ou o Hulk...
Memories é provavelmente o melhor conto da colectânea, e debruça-se sobre as consequências que uma longevidade exagerada pode ter sobre a memória e sobre a própria vida quotidiana dos quase-imortais. O tema não será inteiramente original, mas o tratamento que leva tem muita qualidade, e a própria finalização (o ponto mais fraco da escrita de Tércio) está bem conseguida.
Seguem-se dois contos com atmosferas mais facilmente reconhecíveis. Cão Morto é uma história de terror clássica, sobre aparições numa ilha desabitada da Ria de Aveiro, e o conto seguinte, Sereia, volta a navegar pelo fantástico mais tradicional, contando a história melancólica de uma sereia aprisionada numa lagoa do estuário do Tejo, em plena Idade Média.
O último conto volta às margens do insólito, roçando também a FC porque se passa dentro (e também fora) de uma bioesfera estanque, onde vive durante algum tempo Spin, um cágado com poderes muito especiais.
Finalmente, o livro termina com um artigo, que mostra um Tércio anti-científico e muito pós-moderno, descrevendo a sua ideia de FC como "uma reacção terapéutica ao império do tempo linear", isto porque, no seu entender, o tempo é circular, não linear: quer corre do passado para o futuro, como a ciência diz, quer pode correr, mais à frente, do futuro para o passado, como diz a subjectividade humana (dirá?), o que torna prováveis todos os paradoxos. Ao ler este artigo, compreende-se por que razão Tércio só raramente escreve FC, e porque razão quando o faz raramente o faça bem. Não que escreva mal, que não escreve: Daniel Tércio é dos poucos autores de género portugueses que escreve declaradamente bem, só falhando um pouco, por vezes, na finalização das histórias. Tem histórias excelentes, desde que não sejam lidas com base nos protocolos de leitura que presidem à FC, desde que não se lhes chame histórias de FC. Porque quando é FC que pretende fazer sai-se em geral mal, precisamente porque a sua ficção tem muito pouco, para não dizer que não tem nada, de científico. Isto é uma regra que tem, claro, uma ou outra excepção que a confirma.
O Demónio de Maxwell ressente-se disso mesmo. É uma compilação de contos diferentes e em boa medida dissonantes, com vários contos que falham porque pretendem ser FC, sem que o sejam, com outros que não sabem bem o que pretendem ser e com um punhado de contos que resultam bem, sendo que a maioria destes são contos fantásticos. Poder-se-ia classificar este livro como Weird Fiction? Talvez, mas nunca isso é claramente assumido, e é pena.
Mas é um livro escrito com uma prosa de qualidade muito acima do que é hábito encontrar na nossa FC (e nem se fale das traduções). Só por esse motivo, vale a pena lê-lo e, juntando-lhe ainda os contos de boa qualidade geral que o livro contém, a notazinha de quatro estrelas é inevitável.
Mas não peguem neste livro à procura de FC, é o aviso que se impõe.

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O Demónio de Maxwell

por Daniel Tércio

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 153

1993

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A Vocação do Círculo

Pedra de Lúcifer

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Sally

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2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

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