R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Sinais dos Tempos

por Connie Willis

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 08.12.2002

republicada em 25.10.2003

Connie Willis tem um estilo muito próprio, o que deve ter influência na quatidade de prémios que arrecadou no campo. Um estilo feito de pequenos detalhes não relacionados com a narrativa principal, por vezes com aparência de suprema irrelevância, de personagens caricaturais e cheios de tiques... e de histórias inesperadas.
E esta é uma história inesperada. Bellwether (título original deste pequeno romance) conta com muito humor a história de uma pesquisa sociológica num instituto de investigação privado e sujeito às mais disparatadas modas de gestão de recursos humanos. Sandra Foster é um desses recursos humanos, mas um recurso que vai assistindo às contínuas mutações no seu ambiente de trabalho num estado de espírito que oscila entre a irritação, a exasperação e o fascínio. É que, afinal de contas, a socióloga Foster pretende descobrir a origem das modas, e o instituto fornece-lhe material de estudo abundante.
Para descobrir o que procura, a heroína vai juntar-se (ou ser junta, por uma quantidade impressionante de coincidências) a um outro cientista, que estudava o comportamento dos macacos antes de ficar subitamente sem eles devido a uma decisão da administração com tanta explicação racional como todas as outras. Bennett O'Reilly toma a teoria do caos como ponto de partida para o estudo do comportamento animal, o que vai acabar por ser decisivo (e daí, talvez não) para o sucesso da empreitada. Num ambiente como o da HiTek (o nome original da firma, alterado várias vezes ao longo do livro) quase não se percebe para que precisava Bennett de macacos. Mas acaba num romance com a Foster sem saber bem como. Acharam o salto entre as duas frases anteriores despropositado? Então é porque ainda não se aperceberam bem do que este livro é.
No meio de falta de macacos (substituídos por ovelhas, estúpidas como só elas sabem ser), romances embrionários, pesquisas bibliográficas acerca dos pontos que possa haver em comum entre as várias modas bizarras que assolaram largas áreas do planeta no passado, decisões absurdas da administração, obcecada em ganhar uma bolsa de investigação tão choruda quanto misteriosa, surge ainda Flip, a mensageira do caos. E o livro torna-se caótico.
Flip é a imagem da incompetência e da burrice. Funcionária administrativa da HiTek, contratada como estafeta, Flip vai baralhando tudo aquilo que é possível baralhar. Não faz uma única coisa certa, deita alegremente para o lixo pesquisas que levaram meses a concretizar, enquanto se passeia indolentemente pelos corredores da HiTek ostentando todas (mas absolutamente todas) as modas mais recentes, saltando de uma para a seguinte com a desenvoltura de quem sempre usou aquilo e nunca usará outra coisa, porque só se pode usar aquilo e tudo o resto é horroroso, e vai subindo na hierarquia da empresa até acabar a influenciar decisivamente as decisões da administração, horrorizando toda a gente que, na empresa, tem dois dedos de testa. Um coas de pessoa. E quanto à prosa, ela é também um caos, imitando fielmente os percursos caóticos dos nossos pensamentos.
OK, chega. O livro é hilariante. Uma montra das futilidades humanas construída com um sarcasmo implacável, e nem a surpresa final escapa, quando finalmente se desvendam as origens das modas, quando a pesquisa de Foster atinge o resultado final.
Mas onde está a FC? Só se for na capa...
É que, em todo o livro, o único indício de estarmos num universo de FC (e mesmo este sujeito a alguma boa vontade) é a própria pesquisa sobre a origem das modas. Tudo o resto é presente ou passado, tal como eles foram ou são, e nenhum dos sinais que habitualmente ajudam a identificar a ficção científica está presente. A teoria do caos aplicada à sociologia? Em 1996, data em que Connie Willis publicou Bellwether, a teoria do caos estava na moda, e tentava-se a sua aplicação a tudo e mais alguma coisa. Quanto ao resto... empresas daquelas muitos de nós conhecemos, personagens como Flip, mesmo que em versões mais benignas, também.
Diz-se frequentemente que é mais fácil dizer o que não é FC do que identificar aquilo que o é. E Sinais dos Tempos não é FC, muito definitivamente, mesmo que como tal seja apresentado. É, portanto, um livro que pode ser lido sem qualquer risco mesmo por quem detesta ficção científica. Quanto aos que gostam dela, podem também divertir-se com o livro, porque não só conhecemos bem aquele tipo de situação como, afinal de contas, sempre há a inovação científica de ter-se descoberto neste romance aquilo que causa as modas, coisa que nos devia preocupar a todos.
Para terminar, uma palavra para a tradução. Esta é das tais que podem até nem estar muito más ao longo de trechos mais ou menos longos, mas que batem no fundo com asneiras (e são bastantes) que revelam, acima de tudo, uma belíssima dose de ignorância por parte da tradutora (princípio de "incertidão" de Heisenberg?! Cruzes! Como se põe a traduzir FC alguém que ignora coisas tão básicas como o Princípio de Incerteza?! E que nem sequer tem a iniciativa de ir aos livros de física do liceu aprender como se diz aquilo em português?!). Daqueles erros de gritar e arrepanhar cabelos e que destroem por completo o prazer da leitura ao longo de trechos consideráveis. E como o resto nem é grande coisa, a apreciação geral acaba por ser muito, muito fraca.
Em resumo, seria um quatro se não fosse a tradução. Mas assim, vai parar ao três...

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Sinais dos Tempos

por Connie Willis

Publicações Europa-América

colecção Livros de Bolso, série Ficção Científica, nº 244

tradução de Maria de Lurdes Correia

1999

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Jorge Candeias escreveu:

 

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2002

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