R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

O Dia do Juízo Final

por Connie Willis

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 01.09.2003

O Dia do Juízo Final é a tradução algo desastrada de Doomsday Book, obra que deu a Connie Willis uma das suas "dobradinhas": o Hugo de 1993 e o Nébula de 1992.
Trata-se de um calhamaço de 500 páginas, passado na mesma região de Inglaterra em duas épocas muito diferentes: os nossos dias, ou pelo menos uma versão um pouco mais avançada dos nossos dias (a data é 2054, mas ambientes, lugares e atmosferas poderiam perfeitamente ser de 1992), e a Idade Média, precisamente na altura em que a Europa era assolada pela grande epidemia de Peste Negra do século XIV.
Sim, é uma história de viagens no tempo. Kivrin é uma estudante de doutoramento de pesquisa histórica de uma faculdade britânica, em Oxford, que se prepara minuciosamente para uma viagem até à Idade Média, nas imediações da grande epidemia de Peste Negra (mas não na altura exacta dessa epidemia), a fim de estudar in situ as condições que prevaleciam na vida das gentes da época. Mas algo corre mal, e não só o destino real de Kivrin é deslocado de alguns anos relativamente ao seu objectivo, como viaja ela própria doente, enquanto que no seu tempo se desencadeia uma misteriosa epidemia que vai colocar de quarentena primeiro a universidade, e depois toda a região onde ela se situa.
Resultado: o caos. No tempo presente, a doença de alguns técnicos alia-se à incompetência e pura e simples estupidez dos dirigentes da universidade para fazer com que se perca o rasto a Kivrin. O laboratório de pesquisa histórica é encerrado, sob enérgicos protestos de Dunworthy, personagem principal secundário, digamos assim. Dunworthy orienta Kivrin na preparação para a viagem à Idade Média, apesar de ser historiador, sim, mas especializado no século XX. E desenvolve uma oposição firme ao lançamento de Kivrin para o século XIV com o argumento de ser demasiado perigoso. Além disso, percebe-se rapidamente que tem um fraquinho pela estudante.
Por seu lado, a investigadora chega à Idade Média não na época que estava prevista, uns anos antes da chegada da Peste Negra a Inglaterra, mas precisamente na altura em que a doença alastra com uma força devastadora, vinda do Sul. E chega, como já se disse, doente, não de peste, mas com a mesma doença que vai causar a quarentena de Oxford no seu próprio tempo.
O Dia do Juízo Final é assim, de princípio ao fim: febres, delírios, pústulas, morte. Há nele tanta doença que quase que se sente o cheiro a remédios a elevar-se das páginas do romance. De resto, retrata duas lutas desesperadas contra o avanço, que parece inexorável, da entropia e da desordem, duas lutas paralelas, separadas por 700 anos, que aparentam ser tão fúteis uma como a outra. No fim, ver-se-á se são ou não. Descansem: não vos vou estragar a experiência revelando o fim.
O romance está bem concebido e bem escrito. A Idade Média inglesa está muito bem pesquisada, e Connie Willis descreve-a tão bem que o leitor é como que transportado para a época pela sua mão. O ambiente geral de desesperança também está bem conseguido, e a ironia sarcástica com que Connie Willis mimoseia os gestores das instituições é uma vez mais deliciosa, se bem que aqui, devido ao carácter do romance, o seja menos que em Sinais dos Tempos.
Mas o livro pareceu-me demasiado longo. Pareceu-me que houve longas tiradas que serviram mais para encher páginas do que para fazer progredir a história ou detalhar ambientes ou personagens. Pareceu-me, enfim, que as recentes tendências editoriais no mercado de FC de língua inglesa, que praticamente exigem que se publiquem volumes massiços, autênticos tijolos, mastodontes literários, tiveram demasiada influência sobre este romance. Não fosse isso, teria talvez sido uma obra-prima. Mas assim não me parece que o seja.
É, de qualquer forma, um romance muito bom, que provavelmente mereceu os prémios com que foi distinguido. E a edição portuguesa não o tratou mal. A tradução, é certo, poderia ser melhor, mas também é certo que há piores. E quanto ao resto daquilo que constrói um livro, está ao nível habitual na colecção Nébula.
Quatro estrelas. Bastante altas.

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O Dia do Juízo Final

por Connie Willis

Publicações Europa-América

colecção Nébula, nº 85

tradução de Carla Ribeiro

2001

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