R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

São Leibowitz e a Mulher do Cavalo Selvagem

por Walter M. Miller, Jr.

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 20.01.2004

Um amante de ficção científica que conheça minimamente o género vê este livro numa livraria e imediatamente arregala os olhos para dois nomes: Leibowitz e Walter M. Miller, Jr. A razão é simples: Walter M. Miller, Jr. foi autor de uma das mais magníficas histórias de futuro pós-nuclear já escritas, que intitulou: Um Cântico a Leibowitz.
São Leibowitz e a Mulher do Cavalo Selvagem aparenta fortemente ser uma sequela para Um Cântico a Leibowitz, quer isso esteja expresso na capa do livro (geralmente até está), quer não esteja. Mas não é bem isso. Ou não é só isso.
Quando se fala em sequela, pensa-se sempre numa continuação da história original, que descreve acontecimentos que se terão passado depois de esta ter chegado à palavra "FIM". Por vezes, no entanto, os escritores resolvem desenvolver a história original não propriamente acrescentando factos ao seu futuro, mas sim desenvolvendo os acontecimentos que nela iriam desembocar. Fala-se então em prequela. Mas há ainda alguns escritores que resolvem baralhar as coisas ao desenvolverem melhor fases intermédias da história original, no que se poderá chamar uma derivação.
É isto mesmo que São Leibowitz e a Mulher do Cavalo Selvagem é: uma derivação de Um Cântico a Leibowitz, que desenvolve com detalhe acontecimentos que têm lugar mais ou menos na mesma época da segunda parte daquele livro (Fiat Lux), centrando-se nos nómadas das planícies e nas lutas religiosas (e não só) que os envolvem e aos Hannegans de Texarkana.
Além disso, São Leibowitz e a Mulher do Cavalo Selvagem é e não é um livro de Walter M. Miller, Jr. A história está contada em detalhe no site de Terry Bisson, mais propriamente num artigo que ele escreveu com esse fim. Nele se fica a saber que aquilo que hoje lemos, assinado por Walter M. Miller, Jr. foi na realidade terminado por Bisson logo depois do suicídio de Miller (embora tenha sido este a procurar um escritor que lhe concluísse o romance, que estaria encalhado, e embora Miller tenha aprovado o nome de Terry Bisson... mesmo sem nunca ter ouvido falar dele antes de dar o seu acordo).
Segundo conta Bisson no artigo supracitado, ele pouco fez. O manuscrito que lhe foi entregue era composto por 592 páginas de "obra-prima exótica, sem remendos e incrivelmente rica", faltando-lhe apenas um fim que, no entanto, estava delineado pelo próprio Miller numa série de notas e fragmentos já escritos. Seguindo fielmente estas notas e fragmentos, Bisson escreveu cerca de 100 páginas e deu o romance como pronto. No fim, diz Bisson, o livro "foi e continua a ser inteiramente obra de Miller. Seja o que for que eu fiz, fi-lo escrevendo como ele, e isso é, espero eu, transparente".
OK, mas de que trata o livro?
O livro desenvolve um quadro amplo da vida e da morte no século XXXIV, numa época em que a civilização se reerguia das cinzas de um cataclismo nuclear, que se teria desencadeado no século XX ou XXI. Geograficamente, os acontecimentos descritos no livro limitam-se à zona do médio-oeste americano onde se situa a abadia de São Leibowitz. É a época em que uma nova potência regional se vai impondo, sob governo ditatorial, centrada em Texarkana (uma cidade que no nosso mundo de antes da guerra se situa na fronteira entre o Texas e o Arkansas), e, num movimento expansionista, vai fazendo guerra aos estados vizinhos, engolindo-os e ameaçando o modo de vida dos nómadas das planícies, de cultura muito semelhante à dos índios americanos, que habitam os territórios a Norte e a Oeste, limitados por montanhas onde sobrevivem também colónias de mutantes. Para complicar as coisas, a Igreja Católica (central em todas as histórias passadas neste universo ficcional) domina também vastos territórios desta parte do mundo, e tem grande influência sobre outros territórios que não estão formalmente sob o seu domínio, partindo essa influência, fundamentalmente, da sede do Papado, em Nova Roma, cidade localizada na confluência dos rios Mississípi e Missouri (isto é: St. Louis), e também de Denver (que no nosso mundo é a capital do Colorado).
Neste ambiente, surge Dente Negro (ou Blacktooth) St. George, um monge de Leibowitz (cuja abadia está situada no vale do Rio Grande, nas Montanhas Rochosas, mais ou menos na zona da fronteira entre o Colorado e o Novo México), nómada de origem, que entra em crise de fé e se vê dividido entre Leibowitz e a divindade tradicional do seu povo, a Mulher do Cavalo Selvagem. Em parte por isso acaba por ser arrastado para a órbita de Pónei Castanho (ou Brownpony), cardeal da Igreja, também ele de origem nómada e também ele pouco fiel aos dogmas católicos. O Cardeal, aliás, está mais preocupado com os poderes temporais do que com os poderes espirituais, e a sua principal preocupação é lutar contra Texarkana. Quanto a Dente Negro, além dos deveres inerentes a ser secretário de tal personagem, tem ainda de se preocupar com uma paixão avassaladora por uma mulher misteriosa, que vai pôr à prova os seus votos monásticos.
OK, basta. Já todos percebemos que a ambientação da história e as suas personagens são ricas e complexas. Aliás, outra coisa não seria de esperar de Miller e de algo passado no mesmo universo de Um Cântico a Leibowitz. Mas que tal é o livro?
É bom. Mas não chega aos calcanhares do predecessor.
Eu explico: a história está bem desenvolvida, as personagens são quase todas credíveis e as principais são dotadas de uma profundidade psicológica agradavelmente desenvolvida para os padrões habituais da ficção científica, são evitados grandes rasgos de heroísmo inverosímil, e as pessoas que se movem pelas páginas do romance são apenas homens e mulheres, com as qualidades e defeitos de todos os seres humanos, há ironia q.b. e elaboração q.b. também... mas falta a este romance a relevância de Um Cântico a Leibowitz. No primeiro livro discutem-se grandes temas, de uma forma irónica e aguçada; aqui descreve-se apenas uma aventura, ainda que também irónica e aguçadamente. No primeiro livro cada palavra parecia estar ao serviço do avanço do enredo; aqui Miller estende-se ao longo de páginas por caminhos em grande medida laterais, que décadas antes não teriam merecido mais que umas breves linhas. O primeiro livro descrevia três épocas diferentes, cada uma com os seus valores, problemas e oportunidades; aqui estamos restringidos a um único tempo, em muitas características decalcado da época da conquista do Oeste americano pelo homem branco, o que faz com que São Leibowitz e a Mulher do Cavalo Selvagem mais pareça, tantas vezes, um western. Um bom western, mas um western.
Portanto, e ao contrário de Um Cântico a Leibowitz, São Leibowitz e a Mulher do Cavalo Selvagem é apenas um bom livro, não uma obra-prima.
Quanto à edição portuguesa, a tradução não compromete por aí além mas também não se pode dizer que seja boa.
Tudo somado: quatro estrelas.

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São Leibowitz e a Mulher do Cavalo Selvagem

por Walter M. Miller, Jr.

Publicações Europa-América

colecção Nébula, nº 82

tradução de Maria de Lurdes Correia

2000

Críticas a outras obras de Walter M. Miller, Jr.

Um Cântico a Leibowitz

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

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e escreveu a introdução e os contos:

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