R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Um Cântico a Leibowitz

por Walter M. Miller, Jr.

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 24.08.2003

Fiat Homo, Fiat Lux e Fiat Voluntas Tua são três novelas independentes que constroem em conjunto um magnífico tríptico sobre os acontecimentos que se desenrolam em torno de uma abadia situada algures no Oeste dos Estados Unidos. Ou naquilo em que o Oeste dos Estados Unidos se foi transformando, ao longo de muitas centenas de anos.
Fiat Homo passa-se no nosso futuro, um futuro longínquo (cerca de mil anos), negro, pós-nuclear, em que o mundo está mergulhado numa nova Idade das Trevas, mais insidiosa ainda do que a primeira porque, nesta, o conhecimento é encarado como gerador de todo o mal (afinal de contas, dizem os novos dirigentes da terra, foi o conhecimento que tornou possível o holocausto), e é activamente perseguido e destruido por tribos de nómadas orgulhosamente ignorantes de tudo, que se tentam manter "puras" através da destruição de tudo o que cheire vagamente a ciência e da eliminação selectiva dos mais evidentes traços de mutação causada pela radioactividade.
Neste contexto, o único centro de sabedoria é uma abadia, digamos, pós-católica, fundada por um tal São Leibowitz, que teria sido capaz de milagres e cujo legado fora a protecção dos restos que pudessem ser recuperados da antiga civilização. Os frades da Abadia têm as tarefas minuciosas e monótonas típicas destas instituições, e copiam cuidadosamente os "textos sagrados": listas de compras, fragmentos de manuais técnicos ou de literatura, esquemas de engenharia, etc.
A ideia é genial, e está magistralmente executada ao longo desta história e das duas que se lhe seguem.
Fiat Homo descreve o cenário e conta a história da descoberta, por um noviço da abadia (o Irmão Francis), de uma gruta situada nas cercanias onde são encontrados documentos preciosos acerca do próprio Leibowitz, acompanhados por um esqueleto. Conta também as investigações que são feitas para encontrar mais elementos sobre Isaac Edward Leibowitz, que terá fundado a ordem a partir do modelo da Ordem de Cister, muito embora fosse judeu. Conta ainda o que se vai passando fora da abadia, as dinâmicas dos diferentes povos que emergiram, naquela região, dos sobreviventes do holocausto, e que na sua maioria adoptaram o modo de vida e até a mitologia dos índios americanos.
Mas conta principalmente a história do próprio irmão Francis, homem devoto mas tão pouco inteligente que talvez não tivesse sido aceite na ordem se não tivesse tido a sorte de encontrar a gruta. Tudo é visto mais ou menos através dos seus olhos, se bem que o cérebro que está por detrás desses olhos, em termos de narração, seja bem mais poderoso do que o do frade. É um artifício que confere ao texto um carácter irónico que vai marcar todo o livro: uma ironia amarga que olha os homens sem qualquer benevolência.
Fiat Homo termina com a morte de Francis, bem de acordo com a sua vida, no momento em que a primeira estrutura nacional organizada reemerge naquela parte do mundo: a cidade-estado de Texarkana.
Fiat Lux passa-se sete séculos mais tarde, quando Texarkana já se organizou num estado forte, sob o domínio dos Hannegans, uma dinastia de reis tirânicos, e se encontra em expansão, empurrando e pressionando os nómadas das planícies. A época é de recuperação do espírito científico, uma nova Renascença, e Texarkana baseia o seu poderio numa superioridade tecnológica conseguida a custo ao longo de gerações, mas solidificada em tempos recentes pelo aparecimento de mentes geniais (especialmente a de Thon Taddeo) que revolucionaram o conhecimento. Politicamente, a época é conturbada, com vários estados (Laredo, Chihuahua, etc...) a lutar pela supremacia regional, e guerras disputadas num ambiente muito semelhante ao dos séculos XVIII e XIX.
A Abadia de Leibowitz, entretanto, permanece praticamente imutável, com os monges copistas a desempenharem as suas tarefas com a minúcia possível. Mas os novos ventos vindos do exterior também acabam por atingir a abadia, e há frades que começam a interrogar-se sobre se aqueles textos da Memorabilia não serão algo mais do que textos sagrados sem significado algum que não seja místico. É, aliás, dentro das paredes da abadia que um dos frades, o irmão Kornhoer, se revela inventor ao redescobrir a luz eléctrica, na presença de Thon Taddeo.
A história termina no momento em que as nuvens da guerra generalizada pairam de novo sobre aquela zona, com as duas principais potências da região, Laredo (em cujo território se situa a abadia de Leibowitz) e Texarkana, a preparar-se para um embate total.
Fiat Voluntas Tua, a mais pequena das três histórias, passa-se mais algumas décadas no futuro, quando a civilização é, uma vez mais, inteiramente tecnológica, com estradas, automóveis, aviões, videofones, veículos espaciais mais avançados do que os que temos na nossa actualidade... e armas nucleares. Para piorar as coisas, as nações são autoritárias e a ameaça de uma repetição do passado é cada vez mais iminente. A Abadia de Leibowitz confronta-se com a indiferença generalizada do mundo exterior, que a olha como um anacronismo sem consequência, desprezando activamente os seus frades. Está também decadente, com falta de vocações que renovem a instituição. Mas a igreja fez planos, ao longo das décadas anteriores, para a eventualidade de uma nova guerra nuclear.
Esta é, das três histórias, a mais pessimista. Não só por parecer mostrar a inevitabilidade da auto-destruição nas sociedades humanas, que aqui caminham para o abismo de forma obstinada, sem que ninguém tenha a coragem necessária para tentar parar a espiral de violência, como também porque nela ninguém é retratado de forma positiva, nem mesmo a própria igreja, ou os frades de Leibowitz.
O final é o que tem de ser. O livro não aceitaria bem um final diferente daquele. Mas, antes, ainda há tempo para um magnífico trecho com uma discussão acerca da moralidade da eutanásia que é um dos pontos altos do livro.
No geral, o resultado é uma obra brilhante, um grande clássico da FC que tem o condão de envelhecer muito lentamente e evita a pregação, que seria praticamente inevitável se esta ideia, com estes pressupostos, tivesse sido concretizada por um escritor menor. E Walter M. Miller, Jr., nesta que foi a sua única grande obra, mostra-se tudo menos um escritor menor.
Quanto a esta edição da Europa-América, a capa é magnífica e a tradução, em geral, também é bastante aceitável, embora haja algumas falhas. Mas o problema que mais se nota é a ausência de notas com a tradução dos trechos em latim, que são muito abundantes ao longo de todo o livro. Alguns são inteligíveis, mesmo para quem não sabe a língua, mas muitos ficam bastante incompreensíveis para o leitor vulgar. Quem lê inglês, tem à disposição na internet um "Study Guide", que embora esteja cheio de questões a que os estudantes da obra, num qualquer curso da Washington State University, deverão dar resposta, tem também o latim todo traduzido e parcialmente contextualizado. Mas em Portugal não há nada disso e portanto teria sido importante que a tradução fosse feita. Fica a esperança que numa edição posterior deste livro (que é praticamente inevitável, dada a sua qualidade) isso aconteça.
Este é dos tais livros imprescindíveis numa biblioteca básica de FC. Cinco estrelas.

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Um Cântico a Leibowitz

por Walter M. Miller, Jr.

Publicações Europa-América

colecção Nébula, nº 81

tradução de Tânia Isabel Pereira Vaz

2000

Críticas a outras obras de Walter M. Miller, Jr.

São Leibowitz e a Mulher do Cavalo Selvagem

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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