Ritos de Maioridade
por Octavia E. Butler
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 06.08.2003
Foi este o livro que fez cantar o cisne da colecção azul da Caminho. Esta foi uma das colecções históricas da FC em Portugal, especialmente devido à sua abertura a autores de língua portuguesa e a literaturas menos conhecidas, fora do eixo anglo-americano, que domina as colecções restantes, embora com uma intromissão ou outra por parte dos Irmãos Strugatski ou de Stanislaw Lem.
Octavia E. Butler poderia ter sido uma das pouco frequentes excepções à diferença da colecção: é americana. Mas também não pertence ao mainstream WASP masculino da FC: não só é mulher, como é negra. Também aqui, portanto, a Caminho foi diferente.
Mas se assumir a diferença é uma coisa boa, porque individualiza quem o faz, o que é certo é que a Caminho não podia ter acabado com a sua colecção de pior maneira. É que Ritos da Maioridade é a segunda parte de uma trilogia, globalmente intitulada Xenogénese, da qual a mesma editora tinha já publicado o primeiro volume, Madrugada. Ficou armazenado (e ao que consta com a tradução feita e tudo), eternamente do limbo das edições que não o foram, a última parte, Imago. Quem quiser completar a trilogia tem uma escolha que não deverá ser muito difícil: ou espera por uma improvável edição futura desse livro em português, talvez daqui a muitos anos, ou então vai comprar a edição americana. No momento em que escrevo esta crítica, está à venda na Amazon por 7 dólares.
E que se passa em Ritos de Maioridade?
O tema global de Xenogénese é a chegada à Terra de uma espécie alienígena, os oankali. Chegados nas suas naves vivas e conscientes no momento em que a humanidade se tenta auto-destruir num holocausto nuclear, os oankali intervêm para salvar alguns indivíduos da devastação generalizada, e restauram alguns ecossitemas. Não que sejam propriamente altruístas: trata-se de uma espécie obcecada pela engenharia genética que pretende absorver e integrar no seu próprio património genético o que houver de melhor no das outras espécies, neste caso a nossa. Para isso, os alienígenas entram em bizarros arranjos sexuais com humanos (que também sofrem algumas modificações), baseados numa forma particular de ménage à trois.
Madrugada desenrola-se no interior de uma nave alienígena e conta como estes pormenores vão sendo descobertos por um grupo de humanos, descrevendo os conflitos provocados tanto pelos traumas da guerra como do salvamento como das práticas sexuais com os alienígenas, consideradas contra-natura pela maioria. É um livro perfeitamente contido em si mesmo, que acaba quando a protagonista se "rende", fechando o principal eixo de conflito da história. A rendição, naturalmente, não é total, o que deixa aberto o gancho para o livro seguinte mas não o faz indispensável.
Ritos de Maioridade já não é assim. Não só é menos auto-contido que o livro inicial, pedindo mais quer uma continuação quer a informação do primeiro livro, como já tem lugar na Terra, alguns anos depois dos acontecimentos descritos em Madrugada, numa aldeia (também ela viva) situada no meio da floresta tropical. É um romance mais negro que o primeiro, descrevendo com terrível frieza a forma como os povoamentos de humanos inalterados (aqueles que recusaram a simbiose com os oankali e que por isso foram esterilizados, impedidos de ter filhos) entram em autofagia violenta e em conflito também com os que decidiram ceder e ligar-se aos alienígenas, tentando assim preservar alguma coisa da humanidade.
A história centra-se em torno das aventuras de Akin, um jovem oankali mestiço, de aparência quase perfeitamente humana, que é raptado por um grupo de humanos "puros" e é deixado entre eles pelos da sua espécie. Akin terá mais tarde a tarefa de decidir se os humanos não alterados devem ver-lhes restituída a capacidade de procriar, ou se isso é demasiado perigoso e, pelo contrário, a espécie deve ser deixada extinguir-se, entregue a si própria. Um peso quase demasiado pesado para um jovem dividido entre dois mundos.
É um conflito forte, capaz de gerar um óptimo romance, o que realmente acontece. É um livro invulgar nas ideias que apresenta, rico na sua concretização, bem estruturado e bem escrito, sendo pena apenas que a tradução nem sempre lhe faça justiça, dando mostras aqui e ali de pressa excessiva na concretização do trabalho.
E isso torna ainda mais terrível a atitude da editora. Publicar uma boa segunda parte de uma trilogia, abrindo o apetite para o último volume e depois deixar os leitores em seco é a pior forma possível de acabar uma colecção. A Caminho devia ter vergonha de ter pregado uma tal partida ao público da colecção de FC, que a acompanhou com a fidelidade possível, dado o carácter errático que assumiu nos últimos anos, ao longo de quase duas décadas. No mínimo, publicava o último volume e fechava portas depois. Assim é que não.
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