Resgate no Tempo
por Michael Crichton
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 14.10.2003
O nome de Michael Crichton tornou-se praticamente sinónimo de Parque Jurássico. E a menção de Parque Jurássico traz imediatamente ao cérebro imagens de aventura frenética e catastrófica, de uma FC dirigida muito mais ao sistema límbico, às emoções básicas, do que às áreas pensantes da massa cinzenta. Talvez seja injusto, mas é consequência directa daquilo que o filme foi.
Mas será que é injusto?
É que Resgate no Tempo é igual. Lê-se este gordo romance (mais de 500 páginas) e parece que se está a ler um argumento para um blockbuster de Hollywood, um argumento típico e sem novidades que segue fielmente a receita que obriga a uma reviravolta de enredo, a uma nova situação apertada, a cada X páginas, seja ou não necessário sacrificar a lógica e a coerência interna da história para consegui-lo.
Para ser justo, há que deixar claro que Resgate no Tempo é um romance que está escrito de forma razoavelmente competente naquilo que à linguagem diz respeito. A edição portuguesa tem uma tradução aceitável, e tem o cuidado de manter as ilustrações da obra original. Pode, portanto, dizer-se que se lê bem. Mas a verdade é que a história que é contada não passa, realmente, de um guião de Hollywood.
De um mau guião de Hollywood.
As premissas são as seguintes: uma empresa privada, liderada por um génio intratável, descendente directo de todos os cientistas malucos da literatura e cinema série B, desenvolveu um método de viajar no tempo, utilizando para isso as mais recentes descobertas da mecânica quântica. Com essa tecnologia nas mãos, a dita empresa procura lucrar através do estabelecimento de parques de diversões temáticos ligados à História, que também lhe servem de fachada para outros negócios menos claros (e que permanecem menos claros ao longo de todo o livro — são referidos de passagem um par de vezes mas nunca chegam a deixar de ser pontas soltas). Tudo vai correndo relativamente bem, se descontarmos uns quantos problemas de saúde dos operacionais que viajam no tempo, causados por "falhas de transcrição" (a viagem no tempo é descrita assim como uma espécie de teletransporte quântico, em que os objectos são destruídos para se obter informação estatística acerca das suas partículas, e são reconstruídos noutro tempo e lugar com base nessa informação estatística, o que provoca erros que se vão acumulando à medida que as missões se vão somando). Mas eis que subitamente um dos principais historiadores do projecto fica preso no passado. Mais precisamente numa determinada região da França do século XIV, em plena Guerra dos 100 Anos.
Para encontrá-lo e trazê-lo de volta, é reunida uma equipa de arqueólogos que estavam a fazer escavações na região onde o cientista se sumiu no passado, equipa essa que é preparada à pressa e enviada para o passado à boa maneira dos filmes de Holywood mais recentes e mais idiotas (lembram-se certamente da absurda equipa de perfuradores de petróleo que é enviada para um asteróide naquele filme com o Bruce Willis que é tão mau que nem sequer merece que se mencione o seu título). Os arqueólogos lá vão para o passado, chegam a uma Idade Média de plástico, saída directamente do celulóide (e que diferença que aqui se nota para o livro que Connie Willis escreveu com um tema muito semelhante!) e começam imediatamente a ter problemas.
Problemas em cima de problemas. Para começar, o actor secundário... perdão... a personagem secundária do ex-fuzileiro que deveria proteger os arqueólogos dos perigos da violência medieval, desaparece, decapitado, assim que a expedição chega ao passado. Ops! Eis que frágeis cientistas (incluindo o "elemento feminino") ficam desprotegidos num mundo vionento. Onde foi que eu já vi isto?
Depois, os transmissores que os expedicionários transportam inseridos nos ouvidos avariam-se, deixando de ser fiáveis, e passando a funcionar só quando convém ao autor (o deus ex machina, aliás, é constante ao longo de todo o livro: o pior exemplo é uma mensagem que o tal professor desaparecido envia do passado e que é descoberta pelas escavações do futuro precisamente no momento em que as informações nela contidas são necessárias à equipa de resgate... e à continuação da história. Perfeitamente risível). Mais tarde, uma catástrofe abate-se sobre as salas de transporte, no futuro, destruindo-as, e deixando assim os pobres resgatadores, também eles, presos no passado distante, sem maneira de regressar ao seu tempo. Ninguém se lembra de acalmar as hostes, reparar calmamente as salas, preparar como deve ser outra equipa e enviá-la para aquele ponto no passado, resolvendo os assuntos todos de uma vez só. É como se o passado fosse outra cidade, e as viagens no tempo estivessem sujeitas precisamente às mesmas leis de simultaniedade das viagens no espaço.
Para piorar ainda mais as coisas, anda por essa época um renegado perigoso que ninguém sabe lá muito bem com o que se parece, mas que é originário do futuro (um ex-operacional que se passou um bocadinho dos carretos quando os tais erros de transcrição se fizeram sentir num lóbulo qualquer da sua arquitectura cerebral) e portanto é, provavelmente, capaz de reconhecer os expedicionários (e é o único, porque aparentemente a malta daquele tempo tinha fraco ouvido para sotaques e para falhas no uso da versão medieval do francês).
Ou seja, muito perigo, muito limiar de catástrofe, muita reviravolta a pôr cada vez mais pressão sobre os protagonistas... muita previsibilidade... e muito disparate. A receita que preside à criação de thrillers é seguida com tanta fidelidade que surpreendente seria que não aparecesse mais uma dificuldade qualquer ao fim de 10-15 minutos de fil... aaa... ao fim de um ou dois capítulos.
E por isso, quando se acaba de ler o livro a sensação que fica é de perda de tempo. Este romance não vale minimamente uma leitura. É melhor esperar pelo filme, arranjar um balde de pipocas e deixar o cérebro à porta do cinema.
Uma estrela.
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