R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Disfunção da Realidade - Expansão

por Peter F. Hamilton

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 25.10.2002

republicada em 11.08.2003

Sai-se da Emergência, entra-se na Expansão, o segundo pseudo-romance criado na edição portuguesa com a divisão em dois de The Reality Disfunction. E, claro, não se nota qualquer diferença. Os dois volumes de Expansão são apenas o continuar da história que tem vindo a ser contada ao longo dos dois primeiros volumes, uma história que envolve habitats bitek, edenistas, adamistas, um herói que parece querer "papar" toda a carinha laroca do universo e pelo qual todas essas carinhas larocas se perdem em irresistíveis ondas de humidades íntimas, gente rude e gente má distribuída a esmo por todo o lado, um capitalismo universal, cuja universalidade só é desafiada por um neo-feudalismo capitalista, um anel orbital em torno de um gigante gasoso, cheio de artefactos misteriosos, e um planeta, Lalonde, onde parece que os mortos voltam à vida no meio de uma capa de interferência avermelhada que esconde o que se passa no solo de quem tenta observar de órbita, e que ameaça tornar-se planetária.
Sim, descobre-se nesta parte da história que o que tem vindo a acontecer em Lalonde é uma possessão colectiva que se propaga como uma epidemia. Aquilo que ao princípio parecia ficção científica (ainda que do subgénero space-operático) acaba por revelar-se mais um livro cheio de misticismo de pacotilha, com os mortos a lutar por regressar à vida porque a não-vida é uma grande chatice e eles simplesmente já não a aguentam mais. Os vivos, naturalmente, tentam resisitir, mas pouco podem fazer perante as forças sobrenaturais que se desencadeiam, e a guerra declara-se, violenta e total.
E o pior de tudo é que se chega ao fim só para se perceber que não há qualquer fim. Este quase milhar e meio de páginas serve apenas como aperitivo dos dois volumes seguintes da série, que ninguém parece interessado, ao menos para já, em editar em Portugal. A Disfunção da Realidade não é um romance, é um prólogo gigantesco, e só depois de muito ler se chega a essa conclusão.
E depois de muito ler o quê? Os cultores de Peter F. Hamilton impressionam-se com a qualidade e detalhe do universo construído. Que qualidade? Que detalhe? As sociedades são decalcadas de uma qualquer faceta contemporânea da América (muito embora Hamilton seja britânico, deve ser o mais americano dos escritores ingleses). Todas são capitalistas, todas falam inglês, todas são compostas por WASPs, mesmo que por vezes tenham uns nomes ligeiramente "estrangeiros". Até mesmo as sociedades dos edenistas que, com a peculiaridade dos seus laços de afinidade com habitats e naves poderiam (e deveriam) ter inventado sociedades totalmente novas e originais, acabam retratadas de forma vaga e indefinida, inconsistente. Como sociedades vagamente anarquizantes mas repletas de hierarquias em que a palavra do comandante é lei, que seguem à risca as leis do mercado tal como elas são entendidas na Europa e EUA no fim do século XX. A tecnologia não tem novidade nenhuma, se exceptuarmos, talvez, os laços de afinidade e a condição de pólipo da tecnologia bitek. Naves vivas é coisa que existe há décadas na FC, naves inteligentes idem aspas. Possessões demoníacas e mortos-vivos igualmente, se bem que não na FC ou no que se pretende fazer passar por tal. Onde é que está a novidade? Onde é que está a verosimilhança de uma tal uniformidade cultural numa extensão de espaço vastíssima, colonizada por grupos diferentes de seres humanos? E que faz aquele Joshua Calvert num livro que se pretende que tenha qualidade? Um personagem que mais parece a corporização dos sonhos pueris do autor, que não cresce, não se desenvolve, não tem dilemas morais nem de qualquer outra espécie?
A Disfunção da Realidade é um livro demasiado ambicioso que, por causa desse excesso de ambição, falha redondamente. A história até poderia estar bem contada, não fosse o autor perder-se em pormenores insignificantes que não têm qualquer objectivo dentro deste livro (pode ser que o venham a ter nos outros, não sei, a editora não editou). E não fosse ser tão pateta. Possessões planetárias? Alminhas fartas de estar mortas que tomam conta dos corpos dos vivos, num tempo de maravilhas genéticas, quando para acomodar toda a gente bastaria o cultivo de uma porção de clones acerebrados em desenvolvimento acelerado? Valha-me Santa Ingrácia! Arranjem-me paciência!
Quanto à tradução, salvo aquelas coisinhas do costume que parecem inevitáveis nas traduções portuguesas, até que não está nada má, pelo contrário. Mas não chega para que este livro saia do negativo. Duas estrelas.

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A Disfunção da Realidade - Expansão I

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por Peter F. Hamilton

Livros do Brasil

Colecção Argonauta Gigante, nº 11

tradução de Elsa T. S. Vieira

2001

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