R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Demanda de Fierra

por Stephen Lawhead

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 02.01.2004

Stephen Lawhead tornou-se conhecido nos meios ligados à FC e à fantasia como autor cristão. E se estão surpreendidos com este qualificativo, então fiquem sabendo que a FC e, em especial, a fantasia de pendor cristão são uma autêntica subcategoria do género, que por cá tem pouca expressão mas que vende muito bem na América mais conservadora. São em geral livros com um pendor proselitista muito marcado, compostos com o objectivo ideológico claro de inculcar os chamados "valores cristãos" nos leitores mais jovens. Pouco surpreendentemente, a FC e a fantasia cristãs têm um pendor claramente juvenil.
Lawhead pertence a esta corrente. Escreveu principalmente fantasia, mas também deu uma passagem pela ficção científica com os dois romances de Empyrion e com um romance independente, O Ladrão dos Sonhos.
A Demanda de Fierra é a abertura da duologia de Empyrion, publicada pela primeira vez em 1986. A história começa na Terra de um futuro relativamente próximo, onde vamos encontrar um Orion Treet, escritor e historiador itinerante, de bolsos vazios e inspiração ausente, com uma pistola apontada à testa. Eis o "bom" da história introduzido logo nas primeiras páginas, numa situação criada de propósito para causar simpatia ao coração mole do leitor.
Nas páginas seguintes, vamos assistir à reunião do clássico grupo improvável de todas as sagas de fantasia, e ao início da saga propriamente dita. Sim, disse bem: fantasia e não ficção científica. É que rapidamente se percebe que esta história vai seguir a estrutura típica das histórias de fantasia: um grupo de pessoas sem o que quer que seja que as una, além da vontade do autor, é reunido por uma entidade superior (neste caso uma corporação multimilionária) a fim de desempenhar uma tarefa impossível (neste caso, descobrir o que aconteceu a uma expedição de colonização de um planeta distante — Empyrion —, organizada pela tal companhia, que esperava obter lucros avultados do empreendimento), enfrentando perigos que só são ultrapassáveis porque o nosso grupinho de improváveis companheiros é composto precisamente pelas únicas pessoas capazes de desempenhar a tarefa, com especial destaque para o líder do grupo, um herói relutante mas predestinado.
Ah, e também há um mapa, claro.
Cliché completo. Treet é o herói, e os perigos com que se vê confrontado são, em primeiro lugar, um buraco de verme (wormhole, se só conhecem o palavrão inglês) instável que transporta a expedição directamente para Empyrion, mas não exactamente para o Empyrion de que estavam à espera. Se a ideia original era tentar descobrir o que tinha acontecido à primeira expedição a um planeta vazio de vida inteligente, rapidamente teve de ser alterada para tentar descobrir de onde surgiu a civilização que lá se encontra. Uma civilização encerrada numa cidade soterrada em cúpulas, chamada Domo. Uma civilização humana.
Humana, mas não muito. O sistema social de Domo é um sistema de colmeia, uma teocracia dividida em castas rígidas, obcecada por uns inimigos que ninguém vê há tantos séculos que há dúvidas se não serão mitológicos, os fieri, habitantes de uma segunda cidade, potencialmente tão mitológica como eles, Fierra. Embora se trate de uma sociedade tecnológica, a parte mais avançada dessa tecnologia encontra-se encerrada nuns armazéns chamados Arquivos, e a parte que se encontra em utilização está sob o controlo dos Mágicos que, bem vistas as coisas, acabam por não saber muito dos aparelhos — limitam-se a usá-los e pouco mais.
Até na FC portuguesa houve ambientes deste género. E postos em prática de forma mais credível.
Como qualquer sociedade repressiva, esta também tem os seus dissidentes e, como é óbvio, rapidamente os homens e mulher vindos da Terra se vão juntar a eles, acabando por ser obrigados a fugir de Domo e a enfrentar o deserto que rodeia a cidade, com a esperança de encontrar a tal cidade dos fieri. O raciocínio que seguem até tem a sua lógica: se os habitantes de Domo são o que são e são inimigos dos fieri, Fierra deve ser uma cidade agradável. Mais linear que isto é difícil.
Portanto, ao nos aproximarmos do fim do livro, a expedição parte na demanda de Fierra, originando o seu título. Muitos perigos em mais uma viagem por território desconhecido, e eis que, às portas de uma morte inglória, surge Fierra, bem real em frente dos heróis. Eu sei o que está a pensar quem está a ler isto. É "tinha de ser", não é? Pois é. Se eles morressem ali, acabava-se a história, e isso era aborrecido.
Fierra, naturalmente, é tudo o que o grupo expedicionário tinha sonhado: uma utopia de suavidade e candura, envolta em sorrisos e afagos e rebrilhando durante as noites por causa de uma arquitectura feita com "pedras da luz", um tipo especial de pedras que brilham à noite (por artes mágicas?). A sociedade fieri é descrita como sendo outra teocracia. Mas esta é boazinha, temente ao Protector e respeitadora do voto eterno de paz que tinha feito algures no passado.
Claro: o maniqueísmo não poderia faltar. Numa história destas tem de haver sempre um Bem e um Mal bem claros e evidentes, com maiúscula, para que não haja confusões. Fierra é o Bem, Domo é o Mal, e ficamos com essa certeza, com tudo bem arrumadinho nas nossas cabecinhas frágeis, à medida que o primeiro romance chega ao fim e vai preparando os cordelinhos que vão ser mexidos na continuação. Esta é, aliás, imprescindível: A Demanda de Fierra simplesmente não funciona como romance autónomo. Basta dizer que não acaba com uma chegada, mas sim com uma partida.
Como já se percebeu, este romance está envolto em clichés simplórios e não tem qualquer novidade. O lado menos mau é que Lawhead é competente a fazer avançar a sua história, consegue evitar que a bidimensionalidade das suas personagens seja completa, e teve a sorte de ser vertido para português por uma tradução relativamente boa, pesem embora algumas falhas. Mas a matéria-prima é muito fraca. Este livro é um óptimo argumento para quem quiser defender a FC feita nos países lusófonos: quer em Portugal, quer no Brasil, já se fez muito melhor.
Resumindo e concluindo: duas estrelas.

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A Demanda de Fierra

por Stephen Lawhead

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