R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

O Cerco de Domo

por Stephen Lawhead

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 21.01.2004

O Cerco de Domo é o segundo e último volume da duologia Empyrion, datada de 1986, história de ficção científica miscigenada com fantasia, que abriu com A Demanda de Fierra.
O primeiro romance, se é que se lhe pode chamar tal coisa, tinha acabado com o regresso do herói, Orion Treet, à cidade-estado de Domo, convencido de que era necessário reduzir a cinzas a teologia despótica que a governava, a fim de evitar uma guerra mundial. Um regresso solitário, visto que os seus companheiros terrestres entraram em conflito com ele de formas diferentes. Dois, não acreditando nas suas ideias, preferiram ficar junto dos Fieri. O outro, que em princípio iria regressar com ele e ajudá-lo na sua guerra privada, acaba por enlouquecer às portas da cidade, tenta matá-lo e foge para a floresta onde faz amizade com um grande predador e vive uma vida primitiva.
É neste ponto que O Cerco de Domo começa, e a primeira metade do volume (que ao todo ocupa quase 500 páginas) vai desenrolar-se em três cenários e três linhas de acção, cuja convergência não é imediatamente clara. A principal é a de Treet, clandestino e perseguido na cidade de Domo, onde estuda a história de Empyrion e arregimenta os dissidentes contra os líderes locais, preparando-se (e preparando-os) para desencadear uma guerra civil. Secundariamente, vamos econtrar Pizzle e Yarden entre os Fieri, acompanhando-os numa peregrinação à "Baía dos Peixes Falantes", onde se desenrola um festival tradicional em que os Fieri se encontram com os peixes falantes, com os quais "conversam" telepaticamente, funcionando os animais como uma espécie de oráculo. É isso mesmo, caro leitor: ficção científica em pequeníssima quantidade e fantasia com abundância. A terceira linha de acção acompanha o louco Crocker na sua vida animalesca, acompanhado por uma espécie de tigre de grandes dimensões, e dominado por uma entidade imaterial e, provavelmente, divina.
Ou seja: se o simplismo maniqueísta desta história, a sua fidelidade às fórmulas convencionais de todos os romances de fantasia, já eram evidentes no primeiro volume, este é apenas uma continuação inteiramente coerente. Tal como n'O Senhor dos Anéis, de Tolkien, matriz de toda a fantasia convencional da segunda metade do século XX, também em Empyrion o grupo heterogéneo de aventureiros se vai dividir, seguindo o herói predestinado sozinho, ou quase, em busca do seu destino, em parte subjugado por, em parte lutando contra, forças místicas muito para além do seu controlo ou compreensão. Tal como Frodo Baggins, também Orion Treet sofre de algumas dúvidas quando tudo parece correr-lhe mal, mas sem que essas dúvidas impliquem alguma flexibilização no rumo que segue. E tal como na maioria dos romances convencionais, também aqui quando tudo parece perdido lá aparece uma misteriosa força superior a dar uma ajudinha.
E, tal como na trilogia do Senhor dos Anéis, também na duologia de Empyrion nenhum dos livros funciona isoladamente. É necessário lê-los a ambos, e em sequência.
Em Empyrion, no entanto, o pior está reservado para o fim, e aproveito para avisar os leitores desta crítica de que me preparo para desvendar o final da história, devendo aqueles de vós que são alérgicos a spoilers passar directamente ao último parágrafo. Eu avisei.
Treet regressa a Domo com o objectivo declarado de evitar um genocídio. Mais: Treet é a única personagem a ver que as forças que irão levar ao genocídio estão em movimento. Nós, os leitores, sabemos que o herói tem razão (como não poderia deixar de ser; afinal, é o herói. E a história é convencional), mas do ponto de vista das demais personagens nada do que ele diz faz grande sentido, bem pelo contrário. Apesar disso, avança obstinadamente rumo à guerra, cheio de certezas inabaláveis como qualquer Bin Laden, e consegue arregimentar um leque razoável de aliados, cada um com os seus motivos próprios para se lhe juntar. Os amigos terrestres, esses, são levados a ajudá-lo por artes mágicas, através de visões e conversas com entidades do "bem", que se desenrolam dentro dos seus cérebros, o mesmo acontecendo com os Fieri, que chegam ao ponto de renunciar ao seu pacifismo sem a mais pequena prova de que o que Treet diz é verdade, baseando-se apenas nessas visões. Tudo isso desemboca na guerra civil desencadeada por Treet em Domo, que é sangrenta, com a morte a ceifar os seus partidários e adversários aos milhares. Mas bem pior está reservado para o desenlace final, com os pacíficos Fieri a serem responsáveis pela destruição das cúpulas de Domo, que se despenham sobre a cidade, toneladas e toneladas de vidro (ou cristal) espesso, causando destruição quase total e um morticínio de grande escala, um autentico genocídio. Ou seja: para evitar um genocídio, Treet provoca outro, mas este, segundo a lógica da história, é justificável, porque o terrestre está do lado do "bem".
Como tantas vezes acontece em histórias maniqueístas, se atravessarmos a camada mais superficial desta história o subtexto é repugnante. O "bem", tal como visto por um grupo de iluminados com acesso directo à divindade, justifica tudo, até mesmo o assassínio em massa. Treet segue fielmente a máxima de todos os fanáticos: "libertar-vos-ei, nem que para isso tenha de matar-vos", e no fim vence e todos vivem felizes para sempre, enfim reunidos os dois povos do planeta, os fieri e as castas de Domo.
Não fosse Lawhead competente a contar a história e a evitar uma bidimensionalidade total das suas personagens, não fosse a tradução agradável, não fosse a edição de boa qualidade, julgo que daria bola preta a este livro. Assim, dou uma estrela. O Cerco de Domo é, definitivamente, um mau livro e, embora contenha mais acção do que A Demanda de Fierra, consegue ser pior que o primeiro volume de Empyrion.

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O Cerco de Domo

por Stephen Lawhead

Bertrand

Colecção Grandes Romances

tradução de Manuel Cordeiro

2001

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A Demanda de Fierra

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

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