R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

As Viagens de Gulliver

por Jonathan Swift

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 11.10.2002

republicada em 15.10.2003

É verdadeiramente uma pena muito grande que este livro de Jonathan Swift tenha ganho o rótulo de literatura para crianças, graças à parte que ele dedica à viagem do sr. Gulliver a Lilliput, a célebre terra de gente minúscula. É que As Viagens de Gulliver são tudo menos literatura para crianças. Eu explico.
Tal como o título indica, ainda que em versão abreviada (o título completo é Viagem a diversas e remotas nações do mundo em quatro partes por Lemuel Gulliver, médico e depois comandante de vários barcos), este livro descreve as viagens fabulosas de Lemuel Gulliver por estranhas regiões localizadas algures nas zonas menos exploradas da Terra à época (o livro saiu em 1793) e, como o título completo indica, divide-se em quatro histórias independentes.
Estruturado como um relato de viagens, ou seja, escrito na primeira pessoa pelo "viajante", o próprio Gulliver, o livro abre com a história mais bem conhecida, precisamente a viagem a Lilliput. Gulliver naufraga e vai dar àquele país, habitado por diminutos seres humanos que vivem sob o domínio de um rei e de leis cruéis e desumanas. Lilliput está em permanente guerra com Blefuscu, um país vizinho habitado por gente do mesmo tamanho, e é esse estado de guerra que acaba por salvar a vida do "gigante".
Em versão suavizada e infantilizada, é esta a história que mais fama dá às Viagens de Gulliver. Mas, em versão completa, esta história é uma sátira cruel à sociedade contemporânea de Swift, servindo Lilliput como parábola da Inglaterra, carácter parabólico que, aliás, é uma constante ao longo de todo o livro.
A segunda viagem e a segunda história leva Gulliver a uma terra de gigantes, Brobdingnag, onde o contraste com Lilliput não podia ser maior. Brobdingnag é um país governado por reis e leis justas, embora algo sanguinárias, e onde a desonestidade é desconhecida. A comparação com a Inglaterra é aqui mais explícita, com Gulliver a tomar o partido da sua pátria e a ser, consequentemente, escarnecido, humilhado e desprezado pelos brobdingnaguianos.
As mais desconhecidas das viagens de Gulliver são as que se seguem. Na terceira parte, Gulliver viaja por sítios estranhíssimos, situados algures no Pacífico: Laputa, Balnibarbi, Glubbdurbdrib, Luggnagg e, finalmente, Japão. Laputa é um fantástico gozo aos académicos que se encerram nas torres de marfim das suas ideias esotéricas e perdem o contacto com as coisas mais básicas da vida. Laputa é uma ilha muito especial: voa. E os Laputanos têm criados cuja única função é bater-lhes nos olhos ou nos ouvidos a fim de que estes órgãos não se esqueçam de funcionar, de tal modo as suas mentes são, também elas, aéreas. Em Balnibarbi, estado vassalo de Laputa, o gozo continua com a visita de Gulliver à academia de Lagado, a capital. Inventores ilustres debruçam as suas vidas sobre coisas tão úteis como a maneira de construir casas começando pelo telhado. Hilariante. De seguida, Gulliver parte para a impronunciável terra de Glubbdurbdrib, uma pequena ilha habitada por magos necromantes. Aí, Gulliver troca impressões (e desilude-se) com uma quantidade apreciável dos nomes ilustres da História em mais um episódio de implacável sátira tipicamente swiftiana. Finalmente (porque a viagem ao Japão não conta), Gulliver vive uns tempos em Luggnagg, terra onde alguns cidadãos nascem com a bênção (ou será a maldição?) da imortalidade, e onde mais uma vez as ilusões de Gulliver são postas em cheque (desta vez até talvez fosse melhor falar em cheque-mate).
A última viagem decorre no país dos Houyhnhnms. Este nome que parece um relincho designa uma espécie de cavalos inteligentes e civilizados, que ficam muito supreendidos quando vêem surgir-lhes à frente um yahoo envolto em roupas e capaz de falar. É que, naquela terra, os homens (ou seja, os yahoos) são bestas repelentes, sujas, estúpidas e viciosas, cuja única serventia são as mãos. Os cavalos (perdão, os Houyhnhnms), pelo contrário, são não só civilizados como desconhecem por completo o conceito de mentira e vivem numa espécie de utopia igualitária. É aqui que o ataque de Swift às instituições inglesas se torna mais violento: apesar dos esforços do bom Gulliver em explicar a lógica por detrás de toda a estrutura social europeia e em desculpar alguns dos defeitos que lhe reconhece, é incapaz de resistir à demolidora lógica dos cavalos, que chegam à conclusão (e acabam por convencê-lo também a ele) de que não é por um yahoo falar e vestir-se que deixa de ser um yahoo.
As Viagens de Gulliver é um livro político, onde se utilizam instrumentos da fantasia, do fantástico e mesmo, por vezes, da ficção científica, para um ataque sem dó nem piedade a todos os vícios da estrutura social vigente nas Ilhas Britânicas do fim do século XVIII, tão semelhante em tantas coisas à estrutura social vigente hoje em dia em toda a Europa Ocidental e no mundo europeizado. Swift não tem contemplações e desmascara todos os vícios, todas as injustiças, todas as hipocrisias, todas as pequenas e grandes crapulices dos seus (e dos nossos) contemporâneos. E usa os mundos que inventa como termo de comparação. Não é um livro que se aconselhe a quem quer manter bem vivas as suas ilusões sobre o mundo em que vive. No mínimo, quem ler este livro com atenção terá algumas convicções abaladas. Mas pode mesmo acontecer que deixe de acreditar na humanidade.
Excelente tradução de José Moura Pimenta para mais uma obra-prima da literatura fantástica mundial. Cinco estrelas..

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As Viagens de Gulliver (I vol.)

por Jonathan Swift

RBA Editores

Colecção Clássicos do Público, nº 10

tradução de José Moura Pimenta

1996

As Viagens de Gulliver II vol.)

por Jonathan Swift

RBA Editores

Colecção Clássicos do Público, nº 11

tradução de José Moura Pimenta

1996

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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