Quatro Andamentos
por Luís Richheimer de Sequeira
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 16.05.2005
Quatro Andamentos é dos tais títulos que nada dizem do conteúdo dos livros, além de tratar-se de uma colectânea de quatro histórias (neste caso, um conto, duas noveletas e uma novela) para as quais o autor não foi capaz de encontrar um elemento unificador suficientemente relevante para merecer um título genérico mais evocativo, nem achou que uma das histórias merecia suficientemente ser destacada das demais para atrituir o seu título ao conjunto.
Mas até há um fio condutor para estas quatro histórias. Há a voz do autor, claro, mas mais qualquer coisa. Uma tentativa, talvez deliberada, talvez fruto de algum acaso, para fazer uma ficção científica realmente portuguesa, com tudo o que isso tem de bom e também de mau. Uma das poucas, diga-se, visto que a ficção científica portuguesa se compraz em geral em transpor para a nossa língua e raramente para a nossa realidade temas e trejeitos típicos da FC anglo-saxónica (e tome-se aqui o termo "ficção científica" no seu sentido mais restritivo, visto que no fantástico e na fantasia as coisas são um pouco diferentes).
Basta isso para dar ao livro de Luís Richheimer de Sequeira um lugar muito próprio na FC nacional.
Mas no fim de todas as histórias, o que conta são os resultados. E há que admitir que aqui os resultados não são propriamente brilhantes.
O livro abre com a história mais curta, com o estranho título de «III». Trata-se de uma peça de FC clássica, ambientada num laboratório de investigação parte civil, parte militar, onde se procura descobrir uma forma de tornar viável uma consciência artificial cibernética. Mas na realidade, nas 26 páginas que o conto ocupa não se passa praticamente nada: como em muitas histórias semelhantes que nos vêm chegando pelo menos desde a golden age americana, aqui vamos descobrindo o que se passa, as motivações, as personagens, através de uma longa conversa que tem lugar entre os cientistas que desenvolvem o trabalho e um misterioso grupo que chega ao laboratório para proceder a uma inspecção. Não vemos acontecer nada: lemos apenas descrições. Só isso e apenas isso.
Na segunda história, Segunda Via, voltamos ao ambiente laboratorial, mas aqui estamos num laboratório português de pesquisa em engenharia genética, que é contratado para um projecto militar da União Europeia que pretende investigar a possibilidade de reprogramar o cérebro humano. Nesta noveleta, no entanto, ao contrário do que aconteceu no primeiro conto, e embora continue a haver muita conversa, muita explicação técnica e muito pouca acção, o leitor segue, de facto, o desenrolar das coisas, deste o início até ao desenlace final em que nada é como se poderia supor à partida.
Depois vem a novela Ironias do Destino. Trata-se de uma história de primeiro contacto, que tem lugar entre uma nave portuguesa (chamada "D. Duarte II", o que faz supor que neste universo Portugal se teria tornado monárquico... e talvez com o actual pretendente no trono, por distópico que pareça) e uma misteriosa e extremamente avançada nave alienígena, em pleno hiperespaço. Embora lenta e semeada de apartes filosóficos e teológicos (o protagonista é o capelão da nave, o padre Dinis, que se vê vacilante na fé perante o que se vai desenrolando e a afirmação, por parte de uma das tripulantes, de que os alienígenas são anjos), trata-se de uma história bem construída e com um número de surpresas suficientemente elevado para prender a atenção do leitor.
A noveleta que encerra o volume, Terra Lusa, é talvez a melhor das quatro histórias. Irónica e politicamente incorrecta, conta a história de um planeta situado perto da fronteira entre a área da galáxia colonizada pela Humanidade e uma área colonizada por uma espécie alienígena, os "bicharocos", com quem se prevê que a todo o momento rebente uma guerra. O planeta, originalmente chamado Omicron Seis, é atribuído para colonização à África Central mas com uma nação supervisora, que neste caso, e porque o planeta não interessa a mais ninguém, é Portugal. A primeira leva de colonos é assim composta por trinta mil africanos, dez mil portugueses e ainda outros dez mil... timorenses. E claro que as coisas começam por correr pessimamente, com declarações de independência pelos não-portugueses e um poder fraco e ineficiente mesmo nas zonas controladas pelo governador português da colónia, mas depois o espírito comercial que a lenda nacionalista atribui aos portugueses vem ao de cima e tudo entra nos eixos quase miraculosamente. Além do humor presente nesta noveleta, ela é interessante também por ser talvez o primeiro texto na FC portuguesa a reaproveitar algo do passado colonial do país para o projectar no futuro ou, até, para construir uma ficção científica em torno dele.
Em geral, o livro tem vários pecados. É muito lento, de tal modo que por vezes se torna aborrecido, todas as histórias são bastante clássicas quer na estrutura quer até, por vezes, nos temas, indo buscar referências a formas bastante antigas de olhar para a FC e de a produzir, e a qualidade do português tem algumas falhas. Mas estas acabam por ser naturais num primeiro livro, e os elementos de novidade que contém acabam por compensar parcialmente esses pecados. Com todos os prós e contras pesados, chega-se á conclusão de que se trata de um livro que, embora nunca chegue ao estatuto de clássico, e embora não seja propriamente bom, merece uma leitura por quem se interessa pela FC portuguesa. Ou seja, merece ★★★
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