O País das Peles
por Júlio Verne
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 01.09.2006
Júlio Verne dispensa apresentações. Em França, é encarado como o pai da ficção científica daquele país, e é certamente um dos pais da FC mundial, juntamente com H. G. Wells, Mary Shelley e mais alguns nomes menos importantes. Autor prolífico, tem obras que pertencem ao património cultural básico da Humanidade, como 20.000 Léguas Submarinas, ou Volta ao Mundo em 80 Dias, mas tem muitas outras obras menos conhecidas. O País das Peles é uma destas últimas.
É um romance que se desenrola nas remotas paragens árcticas canadianas, que estavam à época (o romance data de 1872) apenas a começar a ser exploradas por companhias europeias de caçadores de peles, empurrando no processo a esfera de influência dos europeus (ou dos americanos de ascendência europeia) para norte e para oeste. Era uma zona ainda muito mal conhecida, e portanto um local ideal para que Verne nela ambientasse as suas "viagens extraordinárias".
Mas esta viagem em concreto começa de um modo pouco extraordinário. Um destacamento de soldados contratados pela Companhia de Hudson parte para norte com a missão de fundar a feitoria mais setentrional da América, nas margens do Oceano Glacial Árctico. Os soldados são acompanhados por uma intrépida viajante (e sua criada) e por um astrónomo, obcecado com a ideia de observar o eclipse solar de 1860 no 70º paralelo, latutude onde ele seria total. A primeira parte do romance, intitulada, precisamente, "O Eclipse de 1860", descreve a perigosa viagem para Norte e a fundação e construção da feitoria, terminando com uma erupção vulcânica e um terremoto, e a surpreendente revelação de que a feitoria estava, afinal, bem longe do paralelo 70. É na erupção que a viagem, que até aí fora pouco mais do que uma viagem de exploração, se torna deveras extraordinária.
Acontece que, apesar de não o parecer, a feitoria é fundada sobre uma vasta extensão de gelo flutuante, preso a terra firme durante milénios de forma a que com o tempo se foi cobrindo de terra, vegetação, e até mesmo floresta, e que é libertada com o tremor de terra. Parece pura fantasia, mas à época não o seria. Verne provavelmente não teria conhecimento de que a norte da floresta boreal se estende uma extensão de tundra, onde apenas cresce, e de verão, vegetação rasteira. Mas já teria ouvido falar da permafrost, uma característica de muitos solos árcticos que estão congelados e duros como pedra por baixo de uma camada de terra fértil, e de certeza que conhecia os icebergues. Não é um salto muito grande de imaginação, e nem muito inverosímil tendo em conta o que à época se sabia, supor que por baixo dessa camada de gelo subterrânea poderia existir mais água, que esse gelo pudesse ser gelo flutuante, capaz de se soltar e começar a vogar pelo oceano fora, ao sabor das correntes, arrastando consigo tudo o que sobre ele estivesse: animais, todo o tipo de plantas, e uma colónia de seres humanos.
Com efeito, se exceptuarmos a parte relativa à vegetação e um ou outro detalhe mais inverosímil ou impossível à luz dos conhecimentos actuais (como um urso polar amistoso e com medo da água, ou uma erupção vulcânica no tectonicamente sossegado Norte canadiano), tudo o que Verne descreve neste romance é possível, como foi provado não há muito tempo com o desprendimento de um enorme icebergue com mais de 11 mil quilómetros quadrados de área (metade do Alentejo!), na Antárctida. E a segunda parte do romance, adequadamente intitulada "A Ilha Errante", descreve, ela sim, a viagem extraordinária daquele grupo de pessoas, durante cerca de um ano, à deriva pelo Oceano Árctico e pelo Mar de Bering sobre uma ilha flutuante que se vai fragmentando e afundando, empurradas pelas correntes e pelas tempestades, como acontece realmente com qualquer icebergue.
Não sendo um dos seus livros mais marcantes, O País das Peles não embaraça Verne. É um bom livro da ficção científica do tempo, que embora seja hoje ensombrado por alguns conhecimentos de que Verne não dispunha, por um certo ar ingénuo que é característico da maior parte da sua obra, e por um final que é, talvez, demasiado improvável, com demasiado gosto de deus ex machina, se lê mesmo assim com agrado. E como a tradução até está, de um modo geral, muito aceitável:
★★★★
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