Nas Montanhas da Loucura
por H. P. Lovecraft
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 17.08.2003
Que dizer de Lovecraft que não tenha já sido dito antes, centenas de vezes? E que escrever deste romance escrito num 1939 já longínquo, em que o autor descreve uma mal sucedida expedição à Antárctida, que não tenha sido já escrito até à exaustão por partidários e adversários do modo lovecraftiano de estar na literatura?
Só posso deixar uma opinião privada, enquadrada por alguns factos públicos...
Como disse acima, Nas Montanhas da Loucura descreve uma expedição à Antárctida que acaba em tragédia quando todos os membros dum grupo avançado de exploradores são misteriosamente mortos e o seu acampamento destroçado por aquilo que é, aparentemente, um ser vivo, terrestre (pelo menos deixa rastos), de grandes dimensões, improvável naquele lugar. Na sequência do desastre, dois homens embarcam num pequeno avião e vão tentar saber o que se passou.
Descobrem o acampamento, situado no sopé de misteriosas montanhas até aí desconhecidas da ciência, nele encontram marcas estranhas e restos mais estranhos ainda e, coração apertado pelos pavores que o autor não se cansa de descrever (adjectivando-os até à exasperação) resolvem ir explorar, sobrevoando as montanhas que parecem ter um efeito pernicioso só de olhar para elas. O que encontram enche-os, claro, de pavor: uma cidade gigantesca e com todos os sinais de ser antiquíssima.
Encurtando uma história relativamente longa, os dois aventureiros aterram no gelo dos arredores e vão explorar a cidade, cuja história, como descobrem mais tarde, está escrita em baixos-relevos espalhados pelas paredes. Acabam por entrar num certo edifício, onde encontram um longo complexo de túneis que desaparecem nas profundezas da terra, e que eles descem, atraídos por um fedor insuportável, cruzando-se com os estranhos pinguins que habitam o lugar.
Acabam por quase se encontrar face a face com "a coisa indescritível" (apesar disso descrita como um celenterado gigantesco, e para quem não sabe o que é um celenterado eu explico que corais, medusas, anémonas do mar e alforrecas são celenterados), a origem do mau cheiro, um hálito assassino que desata a correr atrás deles. Terror, pernas para que vos quero sem olhar para trás ("para não perder a razão", diz Lovecraft) e será que se salvam? Será que não? Será que se salva só um? Não digo. Vão ter de ler.
Lovecraft é, dizem os fãs, o mestre incontornável do "terror cósmico". E, independendemente de se ser ou não fã, a realidade é que ele criou o seu próprio nicho dentro da literatura fantástica, ao fundir as velhas mitologias acerca de perigosos seres da noite e das profundezas, omnipresentes na literatura de terror anterior ao seu tempo e nos contos populares de várias partes do mundo, com noções típicas do século XX e da FC, como alguma aparelhagem sofisticada para o tempo (neste caso, um avião), dimensões paralelas e seres extraterrestres que se estabelecem na Terra e interferem com a evolução da humanidade.
Nas Montanhas da Loucura é disso um bom exemplo, porque neste romance Lovecraft faz um apanhado de boa parte do Cthulhu Mythos, ao longo da descrição da cidade perdida e do que os dois exploradores lá vão encontrando, num tom que, apesar dos terrores constantes, chega a ser algo didáctico.
Este romance também é um bom exemplo de outra faceta da escrita lovecraftiana: os adjectivos. Não invejo o trabalho de Manuel João Gomes, que até que se saiu dele airosamente! É que a língua inglesa é mais benevolente para os adjectivos do que a portuguesa e a escrita de Lovecraft até em inglês parece excessivamente adjectivada. São comuns sucessões de três ou quatro adjectivos, rodeando substantivos como paliçadas de qualificação. Os horrores são sempre tenebrosos, os cheiros insuportáveis e indescritíveis, por vezes abomináveis, por vezes tudo junto, a manutenção da razão impossível, etc., etc., etc. O resultado é um texto denso e insuportável... e que — horror de todos os horrores — se torna contagioso!
Nas Montanhas da Loucura também é um romance anacrónico. Talvez em parte por pretender fazer uma homenagem a As Aventuras de Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe, Lovecraft em Nas Montanhas da Loucura adopta um estilo muitíssimo batido. A história é contada em forma de depoimento, artifício muito usado na literatura do século XIX, e retoma um tema — os mundos perdidos — também já explorado até à exaustão muito antes de 1939, bastando lembrar-nos de Júlio Verne ou de Arthur Conan Doyle para nos virem à memória vários exemplos.
Que Lovecraft, apesar de tudo isso, tivesse conseguido até certo ponto inovar e tivesse conquistado uma legião de admiradores e seguidores, é algo paradoxal mas que também é sintoma da sua relevância. Goste-se ou não, e à semelhança de Tolkien, é forçoso admitir que Lovecraft está longe de ser irrelevante e que é preciso lê-lo para compreender muito do que foi produzido mais tarde no seu campo.
Devo dizer que pessoalmente não gosto. Tenho grande dificuldade em suportar o estilo pretensioso, palavroso, hiperadjectivado do escritor americano, e mais ainda quando dou por mim também a plavrar e hiperadjectivar depois de ler trechos da prosa dele. Ler Lovecraft, para mim, é uma luta contra a influência maligna da sua má prosa, influência essa que tem de ser depois expurgada com a leitura de textos escritos em prosa despojada (que também não me agrada muito, mas contrabalança). Uma luta perdida à partida, porque por mais que o leia de guarda levantada, a influência acontece sempre.
É assim como um Cthulhu literário, sempre à espreita nos túneis escuros da falta de talento, atento e preparado, sempre pronto a apanhar nos seus tentáculos o primeiro incauto que se aproxime.
Tenham medo. Tenham muito medo!...
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