Lençol de Sonhos
por João Paulo Silva
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 03.03.2004
Sabem como é quando as histórias se vão construindo quase sem se dar por isso, à medida que se avança na leitura? Sabem como é quando elas parece que vão deixando cair migalhas de curiosidade ao longo do caminho para que quem vem atrás, ou seja, o leitor, as vá seguindo, subtilmente, condizido pela mão mas sentindo-se apenas a passear?
Lençol de Sonhos, de João Paulo Silva, é assim.
Trata-se de uma pequena noveleta, que, não por acaso, venceu a edição 2001 do Prémio Revelação Manuel Teixeira Gomes. Mas isso não basta para a trazer ao E-nigma: é preciso também possuir o fantástico como elemento principal, quer seja único quer não o seja. Não há problema: Lençol de Sonhos é uma história de realismo mágico. Ou uma fábula, se olhada de outro ponto de vista.
A ideia quase parece coisa de história infantil: uma velha, chamada Dores, tem entre mãos um trabalho que parece infinito, e para isso precisa de lençóis, muitos lençóis. E um dia, entre os lençós que uma misteriosa personagem lhe entrega, encontra um rapazito. Pedroto, assim se chama a criança, vai transformar-se, ao longo dos anos que passa com a velha, numa mistura entre ajudante e uma espécie de neto, acabando por descobrir o segredo de Dores, o motivo que a leva a precisar de tanta roupa de cama.
Acontece que os lençóis nesta história de João Paulo Silva não são apenas rectângulos inertes de pano. Bem pelo contrário: são como esponjas que absorvem os sonhos de quem neles dorme. E é esse o material com que a velha trabalha: os sonhos, especialmente os sonhos de crianças como Pedroto, a partir dos quais faz nuvens, preparadas para, um dia, serem largadas nos céus e levarem os sonhos das crianças ao mundo inteiro, encerrados em gotas de água.
Poderia ser coisa de história infantil, não é? Mas as histórias infantis também se caracterizam por um certo tipo de linguagem, que aqui não existe, e por uma forma simples de construir uma história. A prosa de Lençol de Sonhos é adulta e de muito boa qualidade. E a história está construída de forma relativamente complexa, com os avanços e recuos necessários para ir deixando cair a informação necessária e suficiente para tornar claras coisas que são transportadas em curiosidades ao longo de várias páginas, e para criar novas curiosidades para aquilo que está para vir.
Em literatura, quase tudo está nos pormenores. Uma mesma ideia-base pode transformar-se em algo ilegível, se mal executada, ou numa pequena maravilha, se bem executada.
Quanto a Lençol de Sonhos, não será uma obra-prima, mas é certamente uma noveleta que abre o apetite para o que João Paulo Silva terá a mostrar no futuro. Seja no realismo mágico, seja noutro estilo qualquer.
Quatro estrelas.
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