R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Guerra Sempre

por Joe Haldeman

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 30.05.2005

Não sou apreciador de ficção científica militar. Enchem-me de tédio as longas descrições, comuns no sub-género, de sistemas de armamentos ultra-sofisticados, de batalhas e escaramuças no espaço ou em superfícies planetárias ou alienígenas de origem ou tornadas alienígenas pela destruição causada pelas bombas ou pelos efeitos de lasers, feixes de radiações variadas e sistemas ainda mais exóticos e/ou inverosímeis. Todo esse excesso pirotécnico cheio de adrenalina destinado a alimentar o interesse pela história costuma causar-me o efeito inverso: sono. As pálpebras caem, como que puxadas pela gravidade de uma estrela de neutrões em colapso.
Mas Guerra Sempre é um portento.
Publicado em 1974, durante os estertores da guerra do Vietname e a gigantesca agitação pacifista que sacudiu os Estados Unidos nessa época, e assumidamente escrito como resposta ao romance de Heinlein Soldado no Espaço (leia-se: Starship Troopers), este romance segue a carreira militar de William Mandella, um físico recrutado para as forças militares terrestres envolvidas numa longa guerra contra uma espécie alienígena conhecida como "taurans" e que ninguém nunca viu. Mandella é um anti-herói razoavelmente típico. Apanhado a contra-gosto nas malhas do exército graças ao seu quociente de inteligência superior a 150, Mandella aceita o que lhe vai acontecendo porque não tem outro remédio, mas mantém sempre um distanciamento crítico de tudo aquilo que lhe tentam impingir. Não temos aqui propriamente um rebelde, mas também não temos a peça de gado, a carne para canhão mentecapta ou idiotizada pela propaganda militar que abunda em histórias de guerra. Temos um homem inteligente que usa a sua própria cabeça para pensar e nada aceita sem um tipo qualquer de prova, procurando sempre conservar a independência possível na máquina trituradora da individualidade que é a estrutura militar, embora admitindo, ao longo da maior parte do romance, a possibilidade de a guerra realmente não ser totalmente absurda.
Não que aconteça muita guerra. Em lugar das grandes e contínuas batalhas que costuma haver em obras menores, aqui o quotidiano é composto principalmente por aquela preparação e espera que são, afinal de contas, o principal componente da vida militar de qualquer época, intercaladas por súbitas erupções de violência, escaramuças que deixam marcas, companheiros perdidos, mas que aparentam não decidir nada. Em todo o romance existe apenas uma grande batalha, perto do fim, numa bola de gelo sujo perdida no meio de coisa nenhuma, que ambos os exércitos procuram conquistar, sabe-se lá por que obscuro desígnio da estratégia militar.
Até lá, Mandella vai seguindo o caminho que o exército para ele determinou, saltando de colapsar em colapsar (os colapsares, neste livro, são os portais que permitem viajar mais depressa que a luz... muito embora os efeitos relativísticos se façam sentir à mesma) enquanto na Terra vão passando primeiro décadas e depois séculos e Mandella e os seus companheiros se vão transformando em relíquias do passado, completamente desenraizadas no seu próprio mundo que entretanto evoluiu em direcções surpreendentes (e por vezes difíceis de engolir) sem que eles dessem por isso, e onde os seus parentes, amigos e conhecidos foram morrendo um por um.
Mandella vai, também, mudando e entranhando cada vez mais profundamente a noção de que aquilo que ele é, aquilo em que o transformaram, é um soldado, e que nunca será outra coisa qualquer. Não só porque vai subindo na carreira, com uma nova patente a implicar novas responsabilidades (tal e qual como acontece com o protagonista do romance de Heinlein) mas principalmente porque o que aprendeu na juventude, perdida séculos no passado, já não tem a mínima aplicabilidade nos mundos humanos, e porque os próprios mundos humanos já são coisas demasiado estranhas para que neles se sinta em casa. A transformação do soldado, que combate contra alienígenas invisíveis, em alienígena ele próprio, é dos aspectos mais poderosos do livro, e uma componente importante do tremendo libelo anti-guerra que ele constitui.
Mas não é o único. A prosa de Haldeman, enxuta e vigorosa, adapta-se de forma perfeita ao romance, que é contado de uma maneira linear mas totalmente conseguida, sem floreados nem sermões ou teorizações supérfluas. Quase não se dá conta da passagem das folhas por baixo dos dedos. É, apenas (e este apenas não é nada pouco), uma história extraordinariamente bem contada. Um clássico da ficção científica americana.
Se a ideia de Haldeman foi contrapor o seu romance a Starship Troopers, conseguiu-o na perfeição. Onde a prosa de Heinlein é arrastada, mesmo em sequências de guerra, a de Haldeman é enérgica; onde a história de Heinlein pára para dar lugar a longas divagações militaristas, na de Haldeman não há nada, e o pacifismo que existe no romance surge em consequência da própria história, não de manifestos ideológicos enxertados à força na narrativa; onde os diálogos de Heinlein são pomposos, os de Haldeman são credíveis; onde as personagens de Heinlein são títeres, as de Haldeman são seres humanos reais em circunstâncias extraordinárias. Não há comparação possível: Guerra Sempre é infinitamente superior a Soldado no Espaço.
E quando a tudo isto se junta uma tradução que não será brilhante mas é de certeza boa, o resultado só pode ser um: ★★★★★

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Guerra Sempre

por Joe Haldeman

Publicações Europa-América

colecção Nébula, nº 94

tradução de Miguel Ângelo Leal

2004

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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