A Fraude
por Rui Miguel Saramago
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 03.07.2003
Lendo A Fraude, fica-se sem saber lá muito bem o que levou o júri do Prémio LER/Círculo de Leitores a atraibuir o galardão a este romance, em 1996. Teria sido do tema, invulgar na literatura portuguesa convencional, podendo chegar a considerar-se ousado? Teria sido do tratamento dado ao tema? Teria sido da desconstrução pós-modernista em que, a dado passo, o romance embarca? Teria sido de tudo isso? Teria sido de outra coisa qualquer?
Não se sabe. E, sem conhecer os demais concorrentes, também não se sabe se A Fraude mereceu mesmo o prémio que arrecadou.
Trata-se de um romance que conta a história de Querubim, um poeta acidental, habitante de um mundo em que a qualidade dos textos literários é analisada de forma rigorosa, mediante uma abordagem científica, com fórmulas desenvolvidas para o efeito e integradas em programas informáticos. Querubim, para surpresa generalizada, dá à luz poemas perfeitos, que atingem os valores mais elevados da história da avaliação científica da qualidade dos textos.
Ditas as coisas assim, até parece que A Fraude é um romance de ficção científica.
Não é.
A história é desde o início entremeada de referências aos deuses olímpicos, em curtos capítulos escritos de uma forma sacolejante e substantiva. E, com o decorrer da leitura, apercebemo-nos de que o fulcro de tudo não é nem Querubim, nem a relação deste com Diana - a técnica literária que lhe descobre o talento e que inicia com ele um romance tórrido - mas sim Vénus, a deusa do amor.
É que Vénus se apaixona por Querubim, e vai satisfazer esse amor encarnando em Diana, levando (com a sua experiência - afinal de contas para algo se há-de ser deus) o casal ao paroxismo do prazer sexual, e inspirando a obra do poeta. Mas este amor acaba por ser conhecido no Olimpo, onde é encarado com profundo desagrado.
E é sobre isto, o romance. Fantástico, sem dúvida, mas bem longe da ficção científica.
Aliás, mesmo sem deuses nem Olimpos à mistura, A Fraude pouco de FC teria. Falta-lhe a riqueza sociológica que a pequena alteração da realidade que é a avaliação objectiva das obras de arte traria a uma história de FC. Rui Miguel Saramago só muda esse pormenor do mundo em que vivemos; tudo o resto fica tal e qual: as pessoas são as que nos rodeiam, os lugares são os de uma qualquer cidade portuguesa, a tecnologia é a de finais do século XX. Os departamentos de letras transformados em laboratórios científicos não passam de um enxerto num mundo que, no fundo, é banal. Um corpo estranho à sociedade. Um artifício literário.
Mas se A Fraude pretendesse ser um romance de FC, teria de levar em conta outras coisas. Teria de levar em conta quais os desenvolvimentos e em que áreas poderiam levar a uma situação em que a avaliação das obras literárias tivesse valor científico. Teria de levar em conta quais as alterações que esses desenvolvimentos causariam à sociedade como um todo. E teria de levar em conta como o modo humano de olhar para o mundo seria alterado por esses desenvolvimentos. E teria de levar tudo isto em conta, mesmo que depois decidisse ignorar a maior parte (há motivos legítimos para ignorar pormenores em FC - evitar encher demasiado o texto de coisas irrelevantes para a história é talvez o maior). Saramago, no entanto, parece ter ignorado tudo isto antes de levar o que quer que seja em linha de conta. A ideia de FC, para ele, não passa de artifício literário.
É uma opção legítima, ainda que para quem gosta de ficção científica precisamente devido a esta riqueza que nasce dos pormenores, seja uma opção desagradável.
Uma outra característica do romance é entrar, a páginas tantas, em desconstrução. Chegado a um ponto da narrativa que se apresenta aparentemente bloqueado, o autor/narrador intervém, declara-se cicerone de um grupo de leitores que terão de obedecer a uma série de regras, entre as quais não perturbar a história é a mais importante. Mas há um desses observadores externos que desobedece e tira uma fotografia que vai mais tarde aparecer dentro da história, na primeira página dos jornais. Caldo entornado, tudo estragado, o autor/narrador ameaça, chateado, interromper ali mesmo a autoria/narração, etc. e tal. Felizmente, acaba por integrar a tal peripécia na história e seguir adiante com ela.
Muito giro, muito engraçado, um artifício bem pós-moderno. O problema é que um leitor menos benévolo pode perfeitamente pensar algo como "este tipo viu-se à rasca sem saber para onde havia de levar a história, e resolveu arranjar esta desculpa esfarrapada para uma continuação". É que a mão do narrador numa tão descarada ingerência no desenrolar da narrativa é a corporização mais evidente da velha característica que anuncia um escritor preguiçoso: o deus ex machina. O narrador, aqui, é mais deus que os deuses do Olimpo, e a sua intervenção corrompe mais do que a chegada de uma quialquer divindade aos palcos de antanho, montada num andaime movido por uma máquina (a origem da expressão deus ex-machina, para quem não sabe).
Será? Não será? A dúvida permanece.
Em todo o caso, trata-se de um romance fantástico bem escrito e com algumas ideias curiosas, merecedor, portanto, de uma leitura. Não é, propriamente, uma fraude, ainda que tampouco seja, propriamente, uma obra-prima.
Mas, confessando a minha condição de leitor pouco benévolo e vendo-me assaltado pela cruel dúvida, não dou mais que três estrelas a este livro. Se vocês são fãs da ficção científica pura e dura, o mais certo é que não gostem dele. Se preferem outras coisas mais mainstream, talvez gostem. Eu estou algures no meio.
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