Ficções, nº 2
editada por Luísa Costa Gomes
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 13.07.2003
Numa das minhas visitas a uma feira do livro, deparei com uma bancada cheia de uns curiosos livrinhos de capa branca, todos com o mesmo título mas com um número em fundo colorido no canto inferior direito da capa. Um frisozinho de letras pequeninas logo por baixo do título desfez alguns equívocos, dizendo tratar-se não de livros mas sim de vários números de uma "revista de contos", dirigida pela Luísa Costa Gomes e editada por uma editora de que nunca tinha ouvido falar, uma tal de Tinta Permanente.
Vasculhando os nomes dos autores incluídos em cada número, resolvi levar para casa como teste o número 2. Não que me interessasse particularmente o Diderot ou a Maria Velho da Costa, não que já conhecesse o Horace Walpole, a Teresa Veiga, a Isabel Boavida ou a Cláudia Clemente, mas houve dois nomes que me chamaram a atenção: Franz Kafka e Vladímir Nabókov.
Acabei por ter algumas surpresas, e agradáveis ainda por cima. Os meus interesses literários residem fundamentalmente na ficção científica e no fantástico (por esta ordem), sem desprezar os demais géneros (não me ponham à frente é Danielle Steele e porcarias do género - ou então romances piedosos sobre a vida dos santinhos ou do filhinho querido de deusnossossenhor!), e contava apenas com Kafka para me encher por completo as medidas.
Kafka encheu-me as medidas, de facto. Um Artista da Fome é um conto que é perfeitamente caracterizado pela primeira frase:
"O interesse por artistas da fome diminuiu muito nas últimas décadas."
Insólito, fantástico, surreal, o conto descreve a luta de um artista da fome pela dignificação da sua peculiar forma de arte, por despertar para ela o interesse de um público indiferente, e por exceder-se a si próprio, levar a sua actividade artística (passar fome, se ainda não percebeu) até às últimas consequências. Kafka enquanto Kafka, nada mais há a dizer.
As surpresas vieram do anglo-aristocrata Horace Walpole (1717-1797) e da luso-desconhecida Cláudia Clemente (nascida em 1970).
Walpole tem neste número da Ficções dois dos seus seis "contos hieroglíficos", contos em que o absurdo domina, contados em tom de fábula. No primeiro, Um Novo Divertimento da Noite das Arábias, uma princesa de um reino que se "parecia com uma bola de futebol e foi chutado pela montanha para o mar", foi à procura de ovos de cabra e viu-se capturada pelos soldados do reino vizinho, cujo rei sofria de insónias. Acaba a fazer de Sherazade, mas por menos tempo do que mil e uma noites. No segundo, mais fábula ainda que o primeiro, Um Rei e as Suas Três Filhas tinham um problema: a filha mais velha, apesar de ser lindíssima e com imenso espírito e de falar francês na perfeição, nunca tinha nascido. Princesas, por definição, são casadoiras, mesmo aquelas que nunca nasceram, e nem que o consorte seja um príncipe com três pernas que tinha uma saúde débil desde que morrera. Já estão a ver mais ou menos a ideia, não estão?
Quanto a Cláudia Clemente, apresenta-se com dois contos de terror surpreendentemente bem construídos, intitulados Noite de Hotel e Visita à Ilha. Em ambos, a inquietação e a ameaça típica das histórias de terror são bem conseguidos, graças a intervenções inesperadas do sobrenatural. E ambos precisam de ser integralmente descobertos durante a leitura, portanto páro por aqui, perguntando apenas onde tem estado esta autora. O seu maior defeito, se de defeito se trata, é ser muito clássica no modo de escrever.
Resumindo: um número com uma componente fantástica forte, quer em espaço ocupado, quase um terço da revista, quer em qualidade. Se os outros números forem também assim, a Ficções acabará por se tornar importante no âmbito da ficção curta fantástica publicada em português.
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