Os Extremos
por Christopher Priest
uma crítica de Luís Filipe Silva
publicada em 19.10.2001
republicada em 24.06.2003
Nos Extremos da Edição
Parabéns à Planeta Editora: eis um livro contra as más-linguas de que as edições de ficção científica em Portugal têm de ser necessariamente medíocres. Tradução excelente, produção cuidada, Os Extremos apresenta o romance mais recente de Christopher Priest, porta-voz da nova tradição britânica.
Quando se pergunta a um leitor português o que pensa da ficção científica britânica, é muito provável que diga que gosta muito do Arthur C. Clarke, e que o H. G. Wells até que tinha umas ideias geniais, embora datadas. Se voltarmos atrás no tempo, em pleno cenário fantástico, e repetirmos a pergunta à geração anterior (digamos: meados dos anos 80), vamos obter definitivamente a mesma resposta.
Assim evoluiu a nossa percepção do que se vai produzindo naquele país europeu, afinal aqui ao lado, e que nos influencia tanto culturalmente.
Entre os dias de ouro do sr. Arthur C. Clarke, a quem o ano 2001 pertence (não, pasme-se, pelo que nele produziu mas pelo que produziu no passado), e os nossos decorreram entretanto décadas de evolução e revolução temáticas; nasceu e morreu a New Worlds, a polémica revista dos anos sessenta que serviu de modelo à literatura avant-garde e movimentou autores aquém e além Atlântico, e que permite decifrar grande parte do mainstream actual britânico (facto quase sempre ignorado pelos críticos portugueses); atravessou-se uma crise de identidade em que a FC britânica adoptou os cenários americanos mais banais; depois, recentemente, insurgiu-se num expoente de criatividade, e está já de regresso a um abrandamento. Passou por nós, e foi-se, e nem sequer demos por nada.
Ou por quase nada. Algumas obras importantes das últimas décadas foram-se imiscuindo, subtilmente e sem elos de ligação, aqui e ali no nosso meio literário. A colecção azul da Caminho foi responsável pela maioria (J. G. Ballard, Douglas Hill, Garry Kilworth, Ian Watson, Robert Holdstock), mas também houve contribuições pontuais da Clássica Editora (Brian Stableford, Geoff Ryman, Iain Banks). Todos estes autores tendo nascido e crescido no meio de uma revolução cultural que acabou por não ter repercussões por cá no sul da Europa.
E agora, surgindo do nada, como é habitual, eis Os Extremos, de Christopher Priest.
Quem tenha estado atento às colecções referidas, conhece Priest de dois romances menores publicados pela Caminho há uns anos: A Afirmação, e Verão Infinito. Neles, confirmava-se a originalidade do autor nos meandros da realidade virtual e das histórias alternativas (antes do ciberespaço, muito antes de Gibson e Lanier).
Priest, entretanto, não ficou parado. Continuou a produzir romances, ganhou prémios, veio a Portugal em 1996 no âmbito dos primeiros Encontros de Ficção Científica e Fantástico de Cascais. Veio e obviamente passou despercebido - mas não se preocupem, mesmo os nossos autores só os louvamos depois de mortos. Priest tem uma extensa obra, mas podemos dizer com algum alívio que se encontra bem representado nas traduções. Ou seja, tem tido sorte.
E de facto, que Os Extremos, um interessantíssimo estudo sobre o efeito da violência na sociedade moderna, e o fascínio doentio perante o fenómeno dos serial-killers, sendo a mais recente obra deste autor, surja nos escaparates das livrarias portuguesas, é daqueles feitos extraordinários que só a realidade consegue produzir e mesmo a fantasia não ousa. Mais: que a edição tenha sido feita com competência e bom gosto (bem, perdoe-se ao ilustrador, que não devia estar nos seus melhores dias), que a capa apresente em letras garrafais e sem papas na língua «Melhor livro do ano pela British Science Fiction Association», que nas badanas o autor surja como um dos mais influentes na moderna ficção científica, que a tradução (sim, a tradução, o grande calcanhar de Aquiles das colecções portuguesas) tenha uma qualidade e profissionalismo tais de fazer inveja às edições do mainstream em Portugal (oxalá Douglas Coupland tivesse tido a mesma sorte), que a própria edição seja assumida e competente, bem, algo correu mesmo muito mal!
Conta-nos a história o percurso de Teresa, agente do FBI, por terras britânicas, mais especificamente Bulverton, uma pacífica english village que um ano antes tinha sido alvo de ataque por parte de um serial killer, responsável pela morte de dezenas de habitantes; o incidente mudara por completo a vida dos sobreviventes, e passado aquele tempo a terra continuava a sofrer as consequências. Teresa é atraída pelo acontecimento por um motivo obscuro: na mesma data, mas do outro lado do Atlântico, um pistoleiro texano matara o seu marido, Andy, também ele agente do FBI. Que coincidência havia por detrás daqueles dois acontecimentos simultâneos? Entra em cena a corporação ExEx (Experiências Extremas), essencialmente um franchising de realidade virtual espalhado pelo mundo, em que os cenários virtuais se encontram ligados uns aos outros, tal como o hipertexto faz descobrir o vasto mundo da internet.
Basicamente desprovido de elementos fantásticos, a realidade virtual acaba por servir de leitmotiv para uma incursão nas propriedades da memória e do tempo, e de que forma esta afecta a vida. Uma mensagem subtil, contada no estilo directo e pragmático da actual literatura anglo-saxónica, bastante relacionado com a narrativa cinematográfica.
Bastante agradável de ler. E como manda o figurino: a não perder.
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