Os Extremos
por Christopher Priest
uma crítica de Ricardo Loureiro
publicada em 06.10.2002
republicada em 18.09.2003
Realidade virtual. Durante grande parte da década de 90 esta foi a expressão do momento. Até Hollywood, sempre tardia em apanhar as modas literárias, acordou cedo, até porque o tema em si encerra uma enorme carga visual, lançando vários filmes, uns com maior sucesso, caso do The Matrix e em certa medida de eXistenZ, outros mais apagados, como 13th Floor.
Mas, como habitualmente, foram os autores de FC que mais depressa «agarraram» a ideia da RV e a transformaram em tema central de contos e romances.
Para lá dos desvarios do cyberpunk, a RV foi muito mais contida em termos literários, não se dando aos experimentalismos da década anterior, antes se focando nas preocupações sociais emergentes dum novo tipo de entretenimento e, em último caso, no modus vivendi dos protagonistas de um futuro próximo.
E eis que aos escaparates portugueses chega, surpreendentemente, um livro de Christopher Priest, pela mão da Planeta Editora.
Os Extremos é um título de certa forma evocativo da experiência a que a protagonista é submetida. A um tempo designa a própria imersão na RV, e caracteriza as experiências do quotidiano em que se insere este espantoso romance.
São raros os livros que necessitam de mais de uma leitura. Os Extremos é um deles. Este livro ganha uma nova dimensão, um novo sentido, por assim dizer, numa segunda leitura em que, depois da decifração do código subjacente de Priest, o leitor segue as pistas com o regozijo da antecipação. Ao longo do livro, aqui e ali como um bom semeador, Priest larga indícios do que está para vir. Cabe ao leitor saber aproveitar em seu benefício as variadas pistas, construir o puzzle e deleitar-se na visão do quadro completo.
Priest, que já não é virgem em território nacional, tendo anteriormente beneficiado de duas traduções integradas na Colecção Caminho Ficção Científica, é um autor com créditos firmados além-fronteiras. Embora este não seja um dos seus melhores esforços - para isso devemos ler The Prestige - anda lá muito perto.
A história é a de Teresa Ann Simons que, após a morte do marido, parte em licença prolongada para Inglaterra, em busca de respostas. Encontra-as, de certa forma, na GunHo, uma corporação que fornece entretenimento sob a forma de realidades virtuais criadas com base na programação de eventos reais, os quais vão estabelecendo, a pouco e pouco, uma complexa teia de hiperligações causadas pelos próprios utilizadores. Dividida entre o real e o virtual, Teresa segue uma trajectória de decadência psico-afectiva, provocada pelo contacto directo com as virtualidades que a passo e passo invadem o real imanente, até ao ponto em que o leitor se perde em conjecturas sobre o que é e o que não é.
A prosa, complexa, é bem dominada pelo autor, que não dá tréguas ao leitor, lançando-o numa desorientação emuladora das vertigens provocadas pelo uso intensivo da realidade virtual. O livro deve ser saboreado como um bom vinho, lenta e pausadamente, sob pena de se perderem as subtis nuances de estilo que povoam a escrita do autor. É, portanto, uma leitura desaconselhada para os momentos de férias, para o autocarro ou o comboio e no geral para todas as situações em que apenas queremos matar o tempo. Os Extremos, pedem, ou antes, exigem a total concentração do leitor. Qualquer outra forma de ler este livro é uma desconsideração, tanto para si, o leitor, como para o autor.
Por fim uma palavra para a tradução e para a edição. Más, muito más. Mesmo pelos standards nacionais, esta é uma edição que é uma vergonha. Casos a considerar na tradução de Nuno Romano: na página 13 troca "turbinas" (exhaust pipes) por "motores exaustos", destruindo duma penada o sentido da frase. O tradutor decide introduzir uma nota humorística quando a páginas 22 traduz "visto de permanência" (visa) por "cartão Visa". Seria simplesmente hilariante, não fosse caso para chorar perante tamanha incompetência. E, para que não se pense que são casos isolados, temos que considerar na página 126 um "funcionário público" (civil servant) que se «transforma» num "empregado civil", e na página 145 uma nota de rodapé que informa erroneamente sobre o significado de shareware. Finalmente, também um reparo para o trabalho de revisão da (ir)responsabilidade de Luís Milheiro, que deixa passar coisas como a gralha da página 149, onde se muda de género um enfermeiro.
Quanto à edição em si, é feita em papel de baixa gramagem e de toque desagradável, áspero até, com uma impressão muito esbatida e nalguns casos ilegível. Numa nota positiva saliente-se as poucas gralhas e o bom espaçamento das linhas.
Esta edição, pese embora o fraco nível técnico, é contudo imperdível por aqueles que por uma razão ou outra não podem ler o original, única e exclusivamente por causa da excelência do livro e do autor. Esperemos que isto não tenha sido um tiro no escuro e que em breve vejamos a sair dos prelos nacionais a opus magnum de Priest, The Prestige.
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