A Escalada do Ser
por Maria de Lurdes Mendes da Costa
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 23.07.2007
Imaginem um romance de 135 páginas no qual existe apenas um diálogo, à página 61. Um diálogo composto por uma única fala da personagem A, que diz textualmente: "Correu tudo bem Aran? Estava apenas, a reflectir sobre alguns aspectos problemáticos de um trabalho que estou a preparar!" (vírgula em posição esquisita incluída), e que se completa com uma única fala da personagem B, que responde textualmente: "Já sei que estás a pensar irmos até Norgon. Quando pensas sair? Passamos lá quanto tempo?"
Imaginaram?
Agora imaginem que esse mesmo romance quase não tem história e que praticamente se limita a intermináveis descrições do ambiente ficcional, das personagens e das relações entre elas, intercaladas de introspectivas reflexões da autora acerca do que está a escrever ou das ramificações alegóricas que vê naquilo que descreve.
Estão a acompanhar-me?
Agora imaginem trechos sincopados que se pretende que sejam invocativos, como este, à página 49:
Lágrimas, em vão, nos seus olhares. Assomos de raiva fogazes [sic]; logo a dor nos impõe imediato arrependimento.
OK?
Imaginem agora outros trechos que se lêem, relêem e se pensa que ou falta algo no texto ou no entendimento do leitor, como por exemplo este, na página 64:
Portador de frustrante vazio, ser-se número de estatística, cobaia no laboratório das vantagens que, Aran partilha sem a menor colaboração de afecto.
Continuam a seguir-me?
Pois bem, se conseguiram imaginar tudo isto, ficaram com uma muito boa ideia do que é este A Escalada do Ser. Enviada para o futuro e para planetas distantes, esta não-história pretende ser um misto entre ficção científica e alegoria vagamente filosófica que se debruça principalmente sobre os papéis masculinos e femininos na sociedade, temperada de prosa que procura ser poética e reflexiva. Mas falha nisso, como em tudo o mais. A prosa em vez de poética é pretensiosa, maçuda e cheia de erros de pontuação e ortografia (o que nem teria importância se tivesse havido uma revisão cuidada... mas não houve). De ficção científica o livro nada tem a não ser umas pinceladas tão finas como película aderente. E a própria alegoria falha por completo, embora seja esse o aspecto menos mal conseguido do livro. É que uma alegoria é tanto mais eficiente quanto mais capaz é o autor de induzir no leitor as respostas às questões que levanta em vez de as lançar de chofre antes mesmo de levantar as questões, como acontece aqui. Antes de deitar mãos a esta obra, Maria de Lurdes Mendes da Costa teria feito bem em ler com atenção as Viagens de Gulliver, por exemplo, a fim de compreender como se cria uma alegoria que de facto resulta.
A Escalada do Ser é um livro muito, mas muito mau, sob todos os aspectos. Saúda-se a coragem, que tantas vezes falta a autores muito melhores, a coragem de desnudar aquilo que se escreve à avaliação impiedosa do público, mas essa é realmente a única coisa de bom que se pode dizer desta obra. Quem quiser escrever FC e tiver vontade de ver com os seus próprios olhos como não se deve fazê-lo (ou pelo menos uma maneira possível de obter um resultado realmente mau; há outras), poderá achar útil ler este romance ou parte dele. Os restantes o melhor que fazem é evitá-lo.
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