O Dia em que o Mundo Acabou
por Sir Arthur Conan Doyle
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 31.10.2003
Como toda a gente sabe, a popularidade de Sir Arthur Conan Doyle reside principalmente nas suas histórias policiais, por onde o mais famoso detective de ficção de todo o mundo passeia o seu intelecto superior e a sua arrogância. Falo, como é óbvio, de Sherlock Holmes.
Mas Conan Doyle não escreveu apenas policial. Numa época em que ainda não havia a especialização que surgiu em décadas posteriores (especialização essa que em vários sentidos acabou por se revelar bastante perniciosa), era comum que os escritores exercitassem os seus talentos em vários géneros, e Doyle não foi excepção. É dele o célebre romance O Mundo Perdido, no qual nasce outra das suas personagens com tanto de brilhante como de insuportável: o Professor Challenger.
O Dia em que o Mundo Acabou (The Poison Belt, no original) é o segundo romance em que surge o Professor Challenger. Publicado um ano depois de O Mundo Perdido (em 1913, portanto), é uma espécie de sequela daquele livro. Trata-se de uma história de fim do mundo, em que a Terra se vê subitamente ameaçada por um cinturão de veneno cósmico que ameaça engoli-la. Challenger, a partir da observação das propriedades da luz solar (uma "desfocagem das linhas espectrais"), deduz (genialmente, diria ele) o que se passa, e envia para os jornais uma carta de aviso que é ignorada por toda a gente (e outra coisa não seria de esperar, diria ele, da massa de idiotas com quem tem a desdita de compartilhar o planeta). Ao mesmo tempo, envia aos seus velhos companheiros na exploração do Mundo Perdido um convite para comparecer na sua propriedade, armados de botijas de oxigénio.
E a partir da chegada desses amigos e da formação do grupo (composto pelo Professor Challenger e esposa, pelo aventureiro Lorde John Roxton, pelo Professor Summerlee, cientista que nunca concorda com Challenger em coisa alguma, e pelo jornalista Malone), o "sumo" do romance é a descrição da forma como estas cinco personagens assistem, de dentro de um quarto vedado, à destruição de toda a vida animal no planeta Terra, causada pela inalação do tal veneno. Os elementos do grupo estão parcialmente protegidos primeiro pela latitude, logo em seguida pela altitude (o veneno atinge primeiro as baixas latitudes e as baixas altitudes, por qualquer razão nada clara) e por fim pela vedação colocada no quarto onde se abrigaram, sendo o oxigénio necessário à respiração fornecido pelas botijas.
"E é só isso?", pensará quem estiver a ler esta crítica. Não exactamente. Acontecem várias surpresas ao longo do romance, coisas com que nem o genial Professor Challenger contava à partida, coisas que não revelarei porque boa parte do interesse desta história está precisamente no desvendar sucessivo desses acontecimentos. Neste sentido, O Dia em que o Mundo Acabou é uma história de mistério à Conan Doyle, embora um mistério com características diferentes daqueles em que Sherlock Holmes faz as suas aparições.
Direi apenas que para o leitor sofisticado dos inícios do século XXI, este livro pode parecer repleto de clichés e extraordinariamente datado. É natural que assim seja: afinal de contas, estamos em presença de uma obra de FC vitoriana, ambientada na época vitoriana e escrita por um escritor vitoriano, repleta, portanto, de todas as concepções sociais e científicas da sua época, muitas das quais foram definitivamente ultrapassadas no século que se lhes seguiu. Em O Dia em que o Mundo Acabou ainda se fala de éter e há um pouco mais do que laivos de racismo, entre outros sintomas da idade. Além disso, a estrutura geral desta história (e de outras semelhantes da mesma época, escritas por Conan Doyle ou não — estou a lembrar-me, por exemplo, e O Doutor Ox, de Júlio Verne, história que tem muitos pontos de contacto com esta) foi imitada vezes sem conta nas décadas que se seguiram à sua publicação, de tal forma que hoje se fala mesmo, por vezes, num subgénero de histórias de catástrofe (mais no cinema do que na literatura, curiosamente).
Mas é sempre interessante ir beber à origem, ir verificar de que cor e temperatura, afinal, é a água que sai da nascente. E este romance de Conan Doyle é um percursor de centenas de outras histórias. Não será genial, não será das melhores obras do autor, não terá sido uma das que fizeram dele um dos pilares da cultura do século XX (em especial na sua vertente menos erudita), mas é de qualquer modo um bom romance.
Quanto à edição portuguesa, confesso que me irrita bastante esta tendência recente de encher as capas de relevos prateados e dourados. Além de me parecer muito kitsch (bem, a palavra certa é mesmo "foleiro"), torna impossível reproduzi-las correctamente por scanning, o que tem como consequência que aquela imagem ali ao lado não é inteiramente representativa da capa deste livro.
A tradução, por seu lado, é competente. Reflecte adequadamente a prosa simples de Conan Doyle e não atrapalha a leitura.
Tudo somado, quatro estrelas.
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