Devorador
por Gregory Benford
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 12.07.2007
Um dos temas mais comuns da ficção científica é a procura de nós no outro ou, em alternativa, a exploração de possibilidades no que aos outros diz respeito. Sempre que a ficção científica se envolve com extraterrestres, inteligências artificiais, robots, seres humanos em estados físicos ou mentais alterados, etc. — e tudo isto é boa parte do combustível da FC desde que nasceu — ou até mesmo quando projecta seres humanos mais ou menos banais em circunstâncias mais ou menos extraordinárias, a ficção científica lida ou com um desses aspectos, ou com ambos ao mesmo tempo. Até pode não ser o tema principal das histórias, mas está sempre presente, mais ou menos óbvio, mais ou menos escondido.
Outro dos temas mais comuns da ficção científica, e que tem muito a ver com o descrito acima, é a ameaça. O outro que nos ameaça de uma forma avassaladora serviu de motor a milhares e milhares de páginas de FC, e também a milhares e milhares de fotogramas e pranchas de BD, de tal modo que o proverbial monstro de olhos esbugalhados se transformou num dos maiores clichés do género e pretexto para muitos dos ataques que têm sido desferidos contra ele ao longo dos anos. É um tema tão batido que para ser retomado de forma credível tem de tomar uma forma muito diferente da coisa verde com antenas que faz parte do imaginário colectivo da civilização ocidental. E isso, com tantas variações sobre esse tema que foram criadas ao longo dos anos, não é fácil. Nada fácil.
Pois bem: Benford arranjou uma maneira.
O "devorador" que nos apresenta é, nada mais, nada menos, um pequeno buraco negro consciente. À primeira vista pode parecer um conceito descabelado, mas se pensarmos um pouco até faz sentido. Se postularmos que a consciência pouco mais é do que uma forma especial de organizar informação, resulta que para existir basta que exista informação e uma série especial de regras para a organizar, o que implica a existência de uma forma de armazenamento de dados e de energia para os tratar. À nossa tecnologia, à nossa ciência, falta descobrir as regras capazes de transformar informação em consciência, mas o resto já existe, sob múltiplas formas. Este texto, por exemplo, é informação, armazenada num suporte magnético num computador, algures, e disponibilizada através um conjunto específico de regras, provavelmente bem mais simples do que as que permitem criar consciência. Ora, não só é provável que uma tecnologia suficientemente avançada conheça o conjunto de regras de tratamento de informação que levam à consciência — ou até pode ser que não haja regras nenhumas; pode ser que a consciência seja consequência inevitável de uma certa quantidade de dados... mas divago —, como energia é coisa que não falta nas imediações de um buraco negro. Uma das formas que toma é a de campos electromagnéticos poderosíssimos. E assim, uma história e uma ideia-base que poderia servir para divagações esotéricas ganha aqui e assim a credibilidade da FC hard.
Temos então um buraco negro consciente... que acontece estar-se a dirigir para a Terra. O monstro desta vez não tem olhos esbugalhados, mas tem uma fome imensa. Fome de matéria, que utiliza como combustível e que manipula para se ir deslocando pelo espaço e para vários outros fins, e fome de conhecimentos. É um monstro solitário, e talvez meio enlouquecido por o ser há milénios, que depois de uma aproximação que vai deixando clara a sua natureza para a equipa de cientistas (americanos, obviamente; e também um inglês) que lhe vai estudando a rota e as propriedades, entra em órbita em volta da Terra. Quem já leu Benford conhece o estilo: dando uso a um conhecimento de primeira mão sobre o modo como funcionam as instituições de pesquisa nos Estados Unidos e as suas relações com outros sectores da sociedade, Benford gosta de dedicar parte dos seus romances à política institucional, aos conflitos humanos e institucionais que acontecem naquele ambiente, de uma forma que confere espessura às suas obras, mas que por vezes causa algum dano à sua fluidez.
Não é o que acontece aqui. Em Devorador, a parte "institucional" da história está bem entretecida com a descoberta do que é e do que quer o Devorador, e também com uma história de amor desesperado e de morte, que durante algum tempo parece um corpo estranho ao romance, enxertado mais ou menos artificialmente a fim de lhe dar dimensão humana, mas que se vem a descobrir fundamental para o desfecho, muito emboranão de uma forma inteiramente consguida: um leitor razoavelemnte atento apercebe-se do desenlace daquela história de amor muito antes das personagens.
Benford conseguiu neste romance proeza de peso: pegou num velhíssimo cliché da FC e deu-lhe novas roupagens; pegou em características que por vezes lhe estragam as histórias e transformou-as em instrumentos para lhe dar camadas acrescidas de interesse; pegou numa história de FC pura e dura, daquelas que até têm gráficos e esquemas, e criou pelo menos três personagens tridimensionais, sólidas e razoavelmente bem desenvolvidas. Se tivesse logrado (ou sequer tentado) fugir da tendência típica de muitos escritores americanos de FC para resumir o mundo aos EUA, e se tivesse arriscado mais num desfecho menos previsível e banal, poderia ter aqui um daqueles romances que ficam na memória por muitos anos.
Quanto à edição portuguesa, tem a pecha habitual: a tradução, fraquinha, repleta de pronomes, demasiado transparente relativamente ao texto inglês. Por pouco não era suficientemente má para arrastar este livro para a mediania das três estrelas. Por pouco, a edição portuguesa não impedia Devorador de chegar às:
★★★★
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