R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Dança das Sombras

por Roberto de Sousa Causo

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 27.06.2005

Este primeiro, e até agora único, livro de Roberto de Sousa Causo publicado em Portugal junta treze peças de ficção escritas ao longo dos anos 90, muitas delas com publicação prévia no Brasil em revistas e antologias e até uma sob a forma de livro independente.
São histórias muito diferentes umas das outras em dimensão (há três noveletas, três contos, cinco contos curtos e duas vinhetas), em tipo de abordagem à ficção fantástica e até em qualidade, mas que no entanto mantém uma coerência digna de nota, fazendo do volume uma unidade, o que nem sempre acontece em colectâneas de contos.
Nem sempre esta unidade é conseguida pelos melhores motivos, é bom dizer-se. Muito embora emerja destas 226 páginas uma voz própria, graças a uma prosa que em geral é cuidada e de boa qualidade, embora surjam aqui e ali arremedos líricos, talvez numa tentativa de procurar dar algum coração aos textos, a verdade é que se acaba a leitura e a sensação que fica é de uma prosa fria, cerebral, posta ao papel mais numa tentativa de responder a uma espécie qualquer de desafio do que por necessidade de partilhar alguma coisa com os leitores.
Também os próprios temas, embora díspares, contribuem para a sensação de unidade, o que pode parecer paradoxal à primeira leitura mas não é. Por um lado, há uma certa preponderância do horror como fio condutor, presente mesmo em histórias cujos pontos de partida se poderiam supor mais próximos de outros registos, como a ficção científica. Por outro lado, é frequente assistir-se ao transplante para terras brasileiras de temas e assuntos desenvolvidos originalmente noutras geografias. Por outro lado ainda, Causo parece ter feito um esforço deliberado para juntar aqui os seus textos mais referenciais, textos em que o pastiche ou o cliché são omnipresentes e, diria mesmo, por vezes sufocantes.
Esse cliché surge logo no primeiro conto, O Bêbado de Pancada, em que um homem — um boxeur — vive a sua morte não se sabendo morto. Segue-se no fio condutor da colectânea A Vitória dos Minúsculos, um pastiche Wellsiano que transplanta A Guerra dos Mundos para o Rio de Janeiro, num conto que consegue a proeza de espremer a invasão, conquista e morte dos marcianos em apenas 9 páginas.
Segue-se uma das duas vinhetas, O Beijo da Locomotiva, um conto praticamente mainstream sobre um homem que sonhava com locomotivas até que uma descarrilou perto de sua casa, e o tema ferroviário prossegue com Trem de Consequências, conto em que aparecem logo dois velhíssimos clichés: o comboio fantasma (ou, neste caso, uma carruagem fantasma) e a venda da alma ao diabo. É, apesar disso, um dos melhores contos do livro, graças a uma resolução do cliché inteligente e relativamente inovadora.
Outra das melhores histórias de A Dança das Sombras é a noveleta Parada 93, graças a um friso de personagens credíveis e bem construídas numa história de fantasmas que também pouco tem de original para além da sua ambientação numa cidadezinha brasileira, mas que está, também ela, bem construída, conseguindo por isso agarrar a imaginação do leitor.
O mesmo não é possível dizer de História de Amores e Retribuições, mais um conto que se socorre de um cliché batido, transplantando-o para o Brasil. Desta vez encontramos uma criatura predatória que se disfarça de ser humano, algo que até o cinema já usou com eficácia há décadas, basta lembrar The Thing.
Num livro assim, dedicado preferencialmente ao terror e repleto de clichés, não podiam faltar os lobisomens, e lá estão eles em Terra de Lobos, algo desastradamente cobertos por uma discussão com pretensões a dissertação acerca de temas como o feminismo e o lesbianismo. O resultado é tão fraco que dá a sensação que o autor tentou mostrar-se aberto e moderno num tema com que intimamente não se sente à vontade.
Mistérios no Fim da História é outro conto que pouco de fantástico contém. Trata-se de um texto que remete mais para registos próximos das histórias de espionagem e mistério ou, eventualmente, das histórias secretas, temperadas com fortes pitadas de história de amor, mas em que o elemento fantástico é apenas vagamente sugerido. Isto não implica que não seja um conto competente, que é. Também competente é Os Fantasmas da Serra, conto ufológico em que o cliché reaparece sob a forma de luzes no céu, mutilações de gado e ETs sorrateiros que tripulam discos voadores, mas que além disso tem como subtema a situação política (ou, talvez, mais militar) do Brasil em plena ditadura militar.
Os raptos por alienígenas voltam à ribalta no conto seguinte, Encontro no Vigésimo Oitavo Andar, em que, apesar de o ambiente ser bem diferente (neste caso, as pequenas e grandes traições no mundo da publicidade), qualquer leitor relativamente conhecedor da FC clássica reconhecerá O Homem Ilustrado de Bradbury.
O livro termina de forma inteligente, deixando para o fim dois dos melhores textos que contém. Infiltrado, apesar de também ir beber bastante aos clichés ufológicos, é um conto literariamente muito forte, talvez aquele em que a qualidade da escrita pura e simples (isto é, sem entrar em linha de conta com técnicas de construção narrativa) mais se torna aparente. Quanto a Voo Sobre o Mar da Loucura, apesar de se tratar basicamente de um transplante para o Atlântico Sul das histórias sobre fantasmagorias variadas no Triângulo das Bermudas é, à semelhança de Parada 93 (embora um pouco menos), uma história bem construída com personagens fortes e bem elaboradas.
Estas duas histórias finais e o punhado de outras boas histórias que o livro contém podem levar alguns leitores a esquecer as debilidades do resto do volume. Mas a verdade é que não estamos em presença de um livro bom: há demasiada falta de imaginação, ou pelo menos demasiada referencialidade, para isso. Em todo o caso, as qualidades que o livro tem levaram-me a hesitar no número de estrelas que lhe atribuo, hesitação essa que ficou resolvida com um último factor que não é específico deste livro ou de Causo e em que o autor brasileiro é fundamentalmente vítima: a estranheza e, consequentemente, o afastamento que causa o híbrido literário que são os textos com estrutura frásica e lexical brasileira mas grafia portuguesa.
Foi essa praga chamada “aportuguesamento do texto brasileiro” que colocou a minha avaliação deste livro, firmemente, nas:
★★★

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A Dança das Sombras

por Roberto de Sousa Causo

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica, nº 189

1999

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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