A Beleza e a Felicidade
por José Morais
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 24.01.2004
Às vezes, classificar as obras literárias é um desafio que está perdido à partida. E não me refiro aqui ao truísmo tantas vezes esquecido sobre toda a obra ser várias coisas em simultâneo: na maioria dos casos, as obras são claramente todas essas coisas, sem necessidade de adentrar pela ambiguidade. Só para dar um exemplo simples, um romance de FC juvenil é ao mesmo tempo um romance, uma obra de ficção científica e uma obra juvenil, juntando-se em cada um desses conjuntos com outras obras que não pertencem em simultâneo aos outros conjuntos, como ela. Não me refiro a isto. Refiro-me a obras como A Beleza e a Felicidade.
O subtítulo que o livro tem, de "Fantasia Científica", parece à primeira vista começar a balizá-lo. Mas na realidade só serve para aumentar a dificuldade em incluí-lo em categorias, ainda que flexíveis. É que, se A Beleza e a Felicidade pode considerar-se uma fantasia, está muito longe daquilo a que se convencionou chamar "fantasia". Não tem magia, não tem magos, não tem buscas nem espadas encantadas. Conta uma história que em grande medida se pode encarar como terra-a-terra: uma história de amor. A fantasia que tem deriva mais da sua estrutura do que do enredo propriamente dito (por outro lado, que enredo?). Esta ficção tampouco será "científica", na medida em que não inclui nada do que geralmente se encontra na ficção científica, embora, por outro lado, se debruce em parte sobre a psicologia da atracção, chegando mesmo a incluir explanações técnicas à boa maneira dos infodumps da FC.
Mas, mais do que isso, este livro não é novela nem romance. Também não é uma peça de teatro. Tampouco é um argumento para cinema ou televisão, muito embora a explicitação dos cenários e dos planos e movimentos de câmara faça supor que sim. É algo intermédio, misturando características de todos estes tipos de texto de tal forma que torna impossível a sua inclusão em todos eles.
Em suma: A Beleza e a Felicidade é daquelas obras que fazem as delícias de todos os desconstrutores de géneros e categorias. Uma obra inclassificável (apesar da tentativa do autor de a classificar como "fantasia científica", se é que naquele subtítulo se trata disso), que debica em muitos pratos diferentes para compor o seu próprio manjar.
E para lá de toda esta conversa sobre categorias, que pode o leitor encontrar aqui? Há uma citação na contracapa que ajuda bastante a entender este livro:
"Uma história é apenas a máscara de outra história, portanto a máscara de outra máscara. O homem retira a sua máscara. Outra máscara aparece por baixo da primeira. A história de Giovanna, Jane e Jean não é mais do que a projecção de outra história. A Interlocutora surge no ecrã do aparelho de televisão e dirige-se ao Homem Mascarado".
Perceberam?
É que a história desenrola-se em camadas. A mais baixa, a base, digamos, é um triângulo de atracção entre Giovanna, Jane e Jean, psicólogos investigadores, que se deslocam a São Francisco para uma conferência e aí reflectem, em público e em privado, sobre as noções de beleza (como matéria-prima da atracção) e felicidade (como resultado possível dessa mesma atracção).
(Faço aqui um parêntesis para dizer que esta camada pode ter elementos de ficção científica. Não sei de psicologia o suficiente para poder dizer com alguma segurança se as teorias aqui expressas têm ou não base científica, se são ou não inventadas as conclusões que delas se extraem. Se sim, então existe aqui alguma FC; se não, não.)
A segunda camada é composta pelas conversas da Interlocutora com o Homem Mascarado, enigmáticas personagens que seguem a história dos três psicólogos através da televisão e vão comentando as atitudes e pensamentos de um e de outro ao mesmo tempo que os utilizam para se analisarem a si próprios.
A terceira camada é a camada do Narrador, que narra tudo e tudo influencia. Mas estas camadas acabam também por intersectar-se de vez em quando, baralhando as cartas um pouco mais e alimentando a confusão, ao mesmo tempo que é assim introduzido um elemento fantástico que cumpre, até certo ponto, o subtítulo do livro.
Sim, porque o resultado quase inevitável deste tipo de estrutura é um certo grau de confusão. O exercício é interessante como exercício de estilo, mas tem consequências negativas na fluidez do texto e na transmissibilidade das suas ideias ao leitor. Alturas há em que a leitura se torna algo penosa e em que a história parece inconsequente. Por vezes, passado o impacto da novidade, o leitor dá por si a pensar coisas como "OK, e depois?" ou "Que quer o José Morais dizer com tudo isto?"
Nunca fica claro. E em parte por isso, a experiência global acaba por ser algo insatisfatória. Seja como for, é um trabalho interessante.
Três estrelas.
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