O Atlântico tem Duas Margens
organizado por José Manuel Morais
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 12.12.2002
republicada em 19.06.2003
O processo que desembocou n'O Atlântico tem Duas Margens foi consequência do primeiro período nas histórias das FCs portuguesa e brasileira em que autores e leitores dos dois lados do Atlântico compartilharam histórias de forma consistente, no fim dos anos 80 e início dos 90, especialmente nas páginas da revista Omnia, em Portugal e, no Brasil, no veículo do CLFC, o Somium.
A ideia foi juntar parte do que de melhor se fazia na época numa antologia, que servisse assim como uma espécie de cartão de visita da FC escrita e lida em português.
O livro abre com Olhos Roxos, Coração de Chuva, um conto com algum interesse do português João de Mancelos, em estilo bradburiano, contado do ponto de vista de crianças naturais de uma nave espacial, confundidas por referências que não entendem a fenómenos terrestres que nunca vivenciaram.
Segue-se Quando é Preciso ser Homem, de Finísia Fideli, brasileira, um conto curto muito esquecível sobre uma tentativa de invasão alienígena que sai gorada devido à imaginação de um único homem, alimentada a pulps e FC, que engana os invasores fazendo-os supor que nós por cá seríamos muito mais poderosos do que realmente somos.
Logo a seguir, passa-se para um dos melhores textos da antologia: A Verdadeira Invasão dos Marcianos, uma noveleta alucinante em que Herbert Goodfellow, um humano descontente pelas restrições que uma horda de alienígenas politicamente correctos impuseram sobre os produtos culturais humanos, resolve rebelar-se contra o status quo, rouba um artefacto alienígena, viaja para o passado e trata do assunto à sua maneira. Com o máximo de prejuízo, naturalmente.
Segue-se outra noveleta, a premiada A Ética da Traição, de Gerson Lodi-Ribeiro, um trabalho de história alternativa, passado num universo em que o Brasil perdeu a Guerra do Paraguai, está reduzido e dividido em dois estados independentes e a maior potência sul-americana é a República Guarani, uma espécie de Paraguai muito engordado. O enredo gira em torno de um cientista brasileiro negro que descobre um modo de viajar no tempo e ajudar o seu país a ganhar a guerra que, na sua linha temporal, perdera (transformando assim a sua linha temporal na nossa), mas decide não o fazer devido ao muito maior sofrimento humano da nossa realidade. O que significa que trai o seu país... de uma forma ética. Um trabalho que, para portugueses, se torna algo difícil de seguir porque nos faltam as referências históricas sul-americanas que Ribeiro utiliza abundantemente. Mas que, ajuizando pela reacção que colheu do lado de lá do oceano, funciona na perfeição junto dos brasileiros.
Manuel F. S. Patrocínio é o autor (português) que se segue, com o conto Entardecer. Dos piores textos do livro, este conto engloba-se naquele tipo de literatura que é por vezes conhecida como "science fantasy": argumentos típicos de fantasia heróica ambientados em planetas distantes, habitados por humanos e não só. Bastante fraco mesmo no que diz respeito à própria construção da história, que tem um fim que não o é.
A antologia regressa depois ao Brasil, com Jorge Luiz Calife e o conto Sonhadora. Trata-se de uma história passada num universo em que as naves espaciais são guiadas de estrela em estrela pelos sonhos de raparigas... que nem sempre são controláveis. Com inspiração óbvia nos navegadores alimentados a mélange de Frank Herbert, também não é dos melhores trabalhos da antologia.
O senhor que se segue é português, Daniel e Tércio, e o conto, curto, chama-se Eu, Alienígena. Literariamente forte, este conto mostra como um homem se descobre alienígena através de uma vizinha, também ela alienígena, e do seu próprio voyeurismo.
De regresso ao Brasil deparamos com Roberto de Sousa Causo e com os seus Capacetes Azuis, Verdes e Amarelos. Trata-se de um conto de FC militar e militarista, embora com algum certo subtexto ecologista, que põe capacetes azuis brasileiros a guerrear no deserto líbio, e tudo se passa em torno de uma estranha mulher. Também não é dos melhores trabalhos da antologia. Não só não está particularmente bem escrito, como ainda é prejudicado por alguns pormenores com toda a aparência de serem gralhas.
E em seguida volta-se a Portugal, para apanhar um murro no estômago dado por um tal José de Barros, nem mais nem menos que um alter ego do "nosso" João Barreiros. O conto, Os Minino da Noite, conta as peripécias de um dia na vida de Ricardo, matador de emigrantes ilegais africanos (em 93 ainda não os havia vindos de Leste) na área de uma Grande Lisboa de um futuro absolutamente distópico repleto de doenças, sejam elas biológicas ou sociais. Este conto politicamente incorrectíssimo é outro dos pontos altos da antologia.
Ponto alto é, também, o trabalho seguinte: O Altar dos Nossos Corações, de Ivanir Calado. Trata-se de uma noveleta ambientada num Rio de Janeiro entregue às organizações criminosas que, entre tráfico de tudo o que seja ilícito, sequestros e assaltos, vão estendendo tentáculos até às máximas instâncias do poder. Uma visão cruel, contada em jeito de policial, daquilo que pode acontecer às sociedades contemporâneas. E também uma visão bastante lúcida, infelizmente.
O Mundo Distante, de Luís Filipe Silva, é o conto curto que se segue. Longe da sua melhor forma, muito descritivo, Luís Filipe Silva fala-nos neste pequeno conto de um choque de culturas do século XXI, com a Coreia e o Japão como centro e a Europa como "mundo distante".
O brasileiro José Carlos Neves apresenta depois o seu conto curto A Capilomante. É mais um conto que pouco ou nada de relevante traz para o volume. Descreve uma criada de uma dondoca do socialite brasileiro (parece que eles por lá lhes chamam "grãfinas"), que tem o dom de ver o futuro nos cabelos perdidos.
Depois, chega a poesia. João Paulo Cotrim é o nome do poeta, e Instante Zero o nome do poema. Juntar, com qualidade, FC e poesia é coisa que se revela muito mais complicada do que seria de supor à primeira vista, e este poema é uma excelente prova disso mesmo.
Por fim, chega o fecho do livro com Primeiro Amor, um conto curto do organizador da antologia, José Manuel Morais. Trata-se de um conto subversivo que mete padres, meninas, anjos (do sexo masculino), mitos teológicos e fogo, numa mistura explosiva. Não será dos melhores contos deste livro, mas também não é dos piores.
Em suma, O Atlântico tem Duas Margens é o espelho fiel daquilo que era a FC portuguesa e brasileira no início dos anos 90 (e que continua a ser hoje em dia): um género frágil, com poucos intérpretes de qualidade, o que não impedia o surgimento regular de obras de interesse. Pela fidelidade da imagem, é uma obra fundamental na FC lusófona, pela grande qualidade de algumas das obras que contém, também. Mas o conjunto não chega a poder ser considerado bom: contém demasiados trabalhos cuja principal qualidade é esquecerem-se depressa.
Ou seja: no positivo, mas não muito. Três estrelas.
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