O canal é estreito e tem escolhos
por Jorge Candeias
artigo publicado em 29.12.2003
Foi prometido aos nossos leitores que quando a nova experiência do E-nigma fizesse seis meses lhes seria oferecido um artigo em forma de balanço acerca desta revista electrónica e daquilo que a rodeia. Em parte, seria um novo delinear de territórios que se iria substituir ao manifesto com que abrimos o site, em parte seria uma análise daquilo que significa editar ficção científica e fantástico na internet nos dias que correm e, caso se optasse pela continuidade, em parte seria uma apresentação de intenções para o futuro.
Esses seis meses esgotaram-se no início do mês de Dezembro, e aqui estou a conversar convosco.
Há dois anos e alguns meses, abrimos este site com as palavras: “a ficção científica portuguesa está moribunda”. Quisemos com elas agitar as águas, fazer ondas, provocar reacções. Quisemos com elas atirar a tal pedra para o charco adormecido de um género que tem no questionamento de tudo a sua principal força e que entre nós simplesmente não estava a utilizá-la.
E até certo ponto conseguimos. Apesar de uma certa desconfiança, que permanece em muitos espíritos, acerca da teoria e da prática de edição online, o E-nigma transformou-se rapidamente num veículo respeitado, pelo menos dentro da comunidade mais activa de leitores de FC em língua portuguesa. Mesmo apesar das suas muitas falhas. E mesmo apesar de ser, em grande medida, uma iniciativa unipessoal.
Esta, é bom dizê-lo, é a sua maior falha. Aliás, esta é a maior falha da FC em português e a razão principal para a nossa FC&F continuar, ainda hoje, dois anos depois, a estar moribunda.
Não é de agora, note-se. A verdade é que todas as iniciativas da FC portuguesa, das mais amadoras às mais “profissionais”, dependem quase exclusivamente de uma ou duas pessoas. Se é lógico que o Dragão Quântico, como fanzine que é, esteja dependente do seu editor Rogério Ribeiro, porque a natureza dos fanzines é de serem frutos de carolice e esta é uma qualidade individual, a verdade é que também a colecção de FC da Caminho não teria existido sem Belmiro Guimarães, a Argonauta sem Eurico da Fonseca (pelo menos durante boa parte da sua existência) ou a Limites sem João Barreiros. Mesmo nestes meios da edição “oficial”, ou “tradicional”, que supostamente seriam profissionais, a carolice e o voluntarismo de uma ou duas pessoas são os motores que os movem. Para o melhor e para o pior. E isso é péssimo.
É que as pessoas morrem, ou fartam-se, ou zangam-se, ou precisam de gastar o seu tempo a ganhar a vida. E os projectos a que dão corpo, tantas vezes, desmoronam-se com as dificuldades de vida dos seus mentores. Nestas condições, a estabilidade e a continuidade, que são fundamentais para o desenvolvimento das coisas, nunca chegam a existir.
O E-nigma é disso exemplo claro. Pretendendo apontar para a possibilidade de seguir caminhos de um mínimo de profissionalismo, mesmo sem contrapartidas financeiras, esta revista viu-se vítima das vicissitudes não só da dinâmica tantas vezes autodestrutiva do chamado fandom da FC portuguesa, como também das vidas privadas dos seus colaboradores e (principalmente do) editor. Alguns colaboradores de primeira hora desapareceram quando as exigências de trabalho, família ou estudo cobraram facturas mais elevadas do que até aí. Autores e tradutores (em especial estes últimos) incumpriram promessas e deixaram textos por entregar ou ilustrações por concretizar, atrasando alguns projectos por vezes durante anos ou chegando mesmo a inviabilizá-los. Tudo isto aconteceu também (ou principalmente) por culpa da instabilidade de vida do editor, que levou a interrupções no funcionamento do site.
Por tudo isso, o E-nigma nunca foi realmente profissional na sua atitude perante a edição. Ser profissional significa não só ter atenção ao que se publica e ao como, mas acima de tudo cumprir com as promessas que são feitas ao público e dar-lhe aquilo que ele pretende, nas quantidades que pretende, dentro dos limites estabelecidos pelo editor e construídos pelos produtores e dentro dos constrangimentos do processo de edição. Não o fizemos demasiadas vezes. Temos pena, e pedimos desculpa, mas se a experiência destes dois anos mostra alguma coisa é que não conseguimos fazer o E-nigma de outra forma. A vida tem altos e baixos, épocas mortas e épocas vivas, por vezes demasiado vivas, e por vezes simplesmente não há tempo para a carolice.
Se o E-nigma fosse um projecto economicamente viável no sentido de permitir a profissionalização, ainda que parcial, dos seus executores, as coisas seriam diferentes. Se pudéssemos pagar dinheiro que se visse a quem produz para nós, a quem traduz, a quem revê os nossos textos, a quem coloca tudo isto online, teríamos razões para exigir mais deles e de nós. Afinal de contas, dar ao público que investe nas coisas a qualidade que ele merece é dar mostras do mais elementar respeito. Ainda que esta regra seja tantas vezes ignorada quer pelos produtores quer pelos divulgadores de cultura deste país. E dos outros.
Mas isto é académico. O E-nigma não é um empreendimento economicamente viável nem vejo como o possa vir a ser algum dia, logo o que seria se o fosse é conversa puramente teórica e sem consequências práticas. E não o é porque o público não se mostra muito interessado em contribuir financeiramente para o site ou para os autores dos nossos textos. Ou por outra, até há quem se mostre interessado em contribuir. Há poucos mas há alguns. O problema é quando chega a hora de concretizar essa intenção. Foram muito poucos os que o fizeram, pelo menos ao longo destes seis meses.
A verdade é que o novo E-nigma termina o seu primeiro meio ano com as contas ainda no negativo, muito embora parte do prejuízo se refira a um investimento no nome de domínio que foi feito a dois anos. E isto apesar de os custos directos e inevitáveis de manter o site serem bastante baixos.
Mesmo assim, o prejuízo só não é maior porque vários autores em vez de pedirem para receber os poucos euros a que têm direito preferem fazer deles a sua própria contribuição para manter o site. É certamente atitude que se agradece, mas a verdade é que eu preferiria de muito longe poder pagar-lhes, mesmo que pouco dinheiro. Afinal de contas, o trabalho, o esforço, o suor e lágrimas, é deles. E é pena que o público que visitou, por exemplo, o conto No Vento Frio de Tharsis quase 100 vezes (não, não foi o mais visitado — longe disso), apesar de ser uma reedição de algo já publicado anteriormente no E-nigma antigo, não tenha achado que talvez fosse boa ideia acenar com uns eurozitos para ajudar a haver mais.
Nada que eu não esperasse já, francamente. Já se sabe que a crise é negra e que Portugal vai de mal a pior, já se sabe que no E-nigma está tudo livremente disponível para todos os que queiram desfrutar, já se sabe que os modos de pagamento são incómodos. Tudo isto joga contra a viabilidade económica da revista. Mas será que podemos fazer alguma coisa para melhorar a situação?
Quanto à situação económica do país, não há nada que possamos fazer, pelo menos enquanto E-nigma. O empreendimento é demasiado minúsculo e marginal para influir no que quer que seja, portanto podemos desde já riscar esta parcela das contas e prepararmo-nos para nos adaptarmos o melhor que formos capazes ao que os nossos digníssimos governantes (ou desgovernantes, segundo alguns pontos de vista) acharem por bem fazer da economia desta terra.
A gratuitidade do conteúdo do E-nigma é um ponto de honra em que fazemos finca-pé. Já nos foi sugerido que colocássemos parte do conteúdo acessível apenas após pagamento, e já há alguns métodos para o tornar possível. Mas isso é coisa que colide demasiado com a filosofia inicial do site: o fornecimento gratuito online de FC&F de qualidade para fácil consumo e avaliação tanto de fãs como de não-fãs que queiram saber o que anda a fazer (ou o que já fez há alguns anos) e a dizer esta gente estranha da literatura fantástica, a apresentação de crítica às obras do género que seja honesta e desprovida das influências pouco claras que são tão frequentes noutros media, enfim, a promoção de um tipo de literatura que nos é caro. Esses princípios permanecem na nova encarnação do E-nigma como o principal motor do site, e portanto devem ser respeitados. Ora, a única forma de manter conteúdo gratuito e o site a funcionar é através de donativos voluntários.
Uma ideia viável e que não colide com nada, porque se trata de um meio diferente para o qual a filosofia tem necessariamente de ser adaptada, seria o estabelecimento de um acordo entre o E-nigma e uma editora para a edição em papel de material nosso, em parte disponível online e em parte só disponível em suporte físico. Estamos a trabalhar nisso, há algumas portas entreabertas, mas já compreendemos que só poderemos avançar com algo mais concreto quando tivermos algo também concreto entre mãos. Ou seja: é preciso primeiro construir um O Planeta das Traseiras ampliado e de boa qualidade e só depois poderemos falar com as editoras com o preto mais no branco. O que isto significa é que se trata de uma ideia que ainda demorará algum tempo até poder chegar a algum lado.
Quanto às formas de pagamento, enquanto a banca portuguesa continuar a resistir com todas as forças aos micro-pagamentos não há nada que possamos fazer. O ideal para o E-nigma seria possuir uma conta PayPal que pudesse receber quantias quase infinitamente pequenas dos cibernautas através apenas de uns quantos cliques. Mas por enquanto a PayPal não trabalha com bancos portugueses, logo... continuamos à espera.
Seja como for, mal ou bem, o E-nigma vai-se pagando, portanto é para continuar. Com as nossas oscilações, com a vossa paciência e com um trabalho que procuramos que seja sempre o melhor possível mas muitas vezes há condicionalismos que impedem que seja melhor.
Nos tempos mais próximos iremos dedicar-nos à conclusão da reedição da ficção presente no site antigo e à edição de críticas e artigos originais que nos sejam submetidos e que considerarmos dignos de edição no E-nigma (também gostaríamos de ter mais entrevistas). Esta é uma edição rápida: ao contrário da ficção, não exige uma revisão muito atenta e raramente implica muito trabalho de bastidores, o que tem como consequência que geralmente não temos material deste à espera de vez para ser editado.
Continuamos também a receber e a analisar contos para a edição em papel de O Planeta das Traseiras, e deverá ser já durante o próximo mês de Janeiro que reiniciaremos (finalmente!) o trabalho de bastidores na ficção que está em lista de espera, já aceite mas ainda não editada. Assim que concluamos as reedições, o E-nigma será de novo aberto às submissões de ficção.
Mas há também um lado negativo do crescimento do site: não demorará muito tempo até nos vermos obrigados a aumentar a capacidade do nosso alojamento, e isso implica gastos mais elevados. Neste momento temos apenas 5 megabytes livres na conta, o que provavelmente não é suficiente para editar tudo o que temos aceite, à espera de vez. Esperamos que a edição de nova ficção estimule mais alguns contributores potenciais a se tornarem contributores de facto, caso contrário teremos de pensar em estratégias de poupança.
E temos mais algumas ideias em mente, mas como não estão assentes em bases sólidas é preferível não as revelar para já. Nestas coisas da FC portuguesa convém avançar só quando há uma garantia razoável de ter os dois pés bem assentes no chão, caso contrário a queda é quase certa. E a FC portuguesa já teve quedas mais que suficientes na sua tortuosa história.
Como diz o título deste artigo, o canal que leva ao futuro é estreito e tem escolhos, muitos escolhos. Mas é navegável, haja talento e vontade para navegá-lo. Vontade, temos. Talento? Veremos.
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