R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Anos-Luz, ou os Problemas da FC Lusófona

por Jorge Candeias

artigo publicado em 31.10.2001

republicado em 20.07.2003

Há quem pense que para se fazer literatura portuguesa de ficção científica basta escrever bem, saber usar bem a língua portuguesa. É uma escola de pensamento que gerou uma parte significativa da produção nacional de FC dos anos 80 e 90, e que continua hoje em dia a ter filhos. Um dos principais cultores dessa escola resumiu-a há tempos na seguinte frase: "considero que o valor do género - refiro-me ao género literário - só pode ser proporcional ao modo inovador e rigoroso como se utiliza o material da escrita: a língua em que se escreve."
A meu ver, este pressuposto é inteiramente errado. E por uma razão muito simples: o material da escrita não se limita à língua em que se escreve. É, pelo contrário, uma "substância" complexa composta pela língua em que se escreve, pela história que se conta e pelo universo ficcional que se cria.
Se pegarmos na FC portuguesa, lhe tirarmos a média à qualidade e compararmos uma média semelhante obtida com a FC, anglo-saxónica, chegamos à conclusão que a distância é de anos-luz, com vantagem para a segunda. E a razão por que a FC portuguesa está a anos-luz da FC anglo-saxónica tem directamente a ver com a incompreensão do facto expresso no parágrafo anterior. Não faz boa FC quem se preocupa exclusivamente com a linguagem e se esquece de história e universo, tal como não faz boa FC quem se esquece de trabalhar a língua convenientemente. Na FC portuguesa, e atrevo-me a dizer na FC lusófona em geral, muito poucos são os autores que se preocupam com todas as vertentes da criação FC: há escolas que pretendem resumir a FC à história (e incluo na história as especulações científicas e tecnológicas), esquecendo-se da língua ao ponto de encherem os seus textos de erros ortográficos, de concordância verbal, etc., ou seja, ao ponto de escreverem analfabeticamente; há outros, muito poucos, que procuram resumir a FC ao universo (que inclui a ambientação política e social das histórias); outros ainda, talvez a maioria dos que têm sido publicados, limitam a sua atenção à língua tendo como resultado textos por vezes escritos muito competentemente mas sem nada lá dentro que ultrapasse a formalidade da competência linguística.
Mas se é verdade que a FC portuguesa está a anos-luz do que de melhor se faz na Anglosaxonialândia, Itália, Francolândia (e não França por causa, pelo menos, do Canadá francófono que também tem muito boa FC) ou Alemanha (e quanto à Alemanha tenho dúvidas), mas sim porque não é verdade que o que de melhor se faz em Portugal (e no Brasil) não seja comparável com o que se faz lá fora. Talvez seja verdade que essa comparação nos é desfavorável, mas a diferença não é, nem por sombras. de anos-luz.
É certo, por outro lado, que o que de melhor se vai fazendo na FC lusófona é um conjunto de obras reduzidíssimo e bastante espaçado no tempo. Mas isso tem razões objectivas que se podem resumir numa expressão: falta de profissionalismo.
Falta de profissionalismo a todos os níveis. Começando pelos autores, que não são suficientemente exigentes consigo próprios e dão a público obras meio acabadas que eles próprios com meia-dúzia de revisões seriam capazes de transformar em coisas decentes (o que, apesar de tudo, é melhor do que escrever excelentemente para a gaveta), que não se preocupam com todos os aspectos de escrever dentro do género, ou que porque a escrita de FC nos nossos países não os enriquece nem lhes dá (muita) fama põem pura e simplesmente de lado a caneta.
Passando depois pelos editores que, como todos sabemos, publicam pouco e muito, muito mal. Seja a nível de traduções, seja a nível de trabalhos originais. Os editores que sem que seja feita a mais pequena sombra de estudos de mercado decidem o que sai ou deixa de sair mais em função do que "acham que dá" ou do "aquele gajo é meu amigo" do que da qualidade intrínseca das coisas ou da sua vendabilidade, e depois não divulgam, não fazem marketing, aceitam (incentivam?) que as livrarias "refundam" os livros FC que editam para o fundo das estantes, põem os seus livros a preços inacessíveis para muita gente, não são suficientemente exigentes com a qualidade literária quer dos originais quer, muito especialmente, das traduções, não tentam formar um corpo de escritores "da casa", não editam em formato revista que sempre foi fundamental para dar a conhecer e ajudar a amadurecer novos escritores do género, etc., etc., etc.
Passando também pelos próprios livreiros, que põem à venda nem sabem o quê e são muitas vezes incapazes de responder a perguntas tão simples como "tem algum livro do Bear?"
Passando por associações inconsequentes que parecem ficar satisfeitas com o simples facto de existirem e de fazerem uns encontrozinhos "da malta", e reagem violentamente sempre que alguém se atreve a criticar a sua inacção, dominadas por pessoas que encaram cada crítica como um ataque pessoal, talvez porque são incapazes elas próprias de conversar sem insultar ninguém.
Passando pela crítica que não existe e quando tenta existir é sabotada pelos egos artificialmente inflados dos autores, acostumados que estão a ver aplaudida qualquer porcariazinha que façam. Ou então que se vende às amizades e aos interesses inconfessáveis.
Acabando, finalmente, nos leitores que se remetem com demasiada frequência ao comodismo do já conhecido, procuram sempre mais e mais da mesma coisa, relutam em arriscar coisas novas ou, pelo contrário, consomem tudo igualmente, sem critério, do bom ou do mau ou do péssimo ou do horroroso.
Só quando começar a haver algum profissionalismo na FC lusófona ela poderá almejar a algo mais do que ver surgir de vez em quando, duma forma mais ou menos milagrosa, uma ou outra obra que é comparável, ainda que desfavoravelmente, com o que de melhor se faz lá fora.
E, além disso, sem dúvida, tal como o João Barreiros passa a vida a dizer, para escrever FC é preciso saber e conhecer a FC. Seja para escrever, seja para criticar, seja mesmo para publicar. Chama-se a isso profissionalismo, e resume-se isso a conhecer os instrumentos do nosso trabalho.
Seja a FC lá de fora, seja a nossa. Só podemos adquirir um discurso corente em termos de FC lusófona, um discurso que possa um dia ter impacto e ser identificável lá fora, se nos deixarmos de preconceitos e compreendermos que é tão falso que só o que vem de fora é bom como que a FC escrita originalmente em português é que é. Quando aceitarmos que é necessário lermo-nos também uns aos outros, deixarmo-nos influenciar uns pelos outros, aprender uns com os outros. Quando aceitarmos que leitura de traduções e leitura de originais são os dois lados gémeos da mesma moeda que para existir precisa de ambos.
Também isto faz parte de um profissionalismo que é indispensável. E não me venham dizer que para haver profissionalismo na FC é preciso que haja profissionais que ganham a vida na FC. Isso não é verdade. O profissionalismo tem mais a ver com o brio, o gosto e o cuidado com que se fazem as coisas do que com haver ou não o factor-dinheiro nelas.
O que há mais por aí é profissionais que ganham a vida sem nunca sair do mais puro amadorismo na sua profissão...

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Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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