MARS TV
por Gabriel Bozano
conto publicado em 09.08.2002
republicado em 04.08.2003

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MODO DE GRAVAÇÃO PESSOAL
REC...
Quem diria que eu realmente estaria aqui, a mais de 227 milhões de quilômetros da Terra, vislumbrando da janela do meu alojamento o maior vulcão de Marte, Olympus Mons, com seus 29 mil metros de altura. E mais, com duas deslumbrantes Equinianas nuas, se divertindo na minha Jacuzzi. Estou exausto demais para fazer qualquer coisa que não seja sentar em frente da janela com um copo de whisky e esse gravador de pensamentos na cabeça. Daqui a pouco eu volto pra banheira, para me inebriar com suas crinas avermelhadas, sua pele camurça aveludada, seus lábios... Foco. Tenho que voltar o foco para outros pensamentos ou minha biografia vai parecer um filme pornográfico. Preciso de um rascunho mental coerente para que meu ghost writer possa ter algum material para se basear quando estiver escrevendo minha biografia. Vamos ver, por qual lembrança eu deveria iniciar este arquivo de memória? Ah, claro, a estréia da MARS TV.
Acho que nada mudou tanto o planeta quanto a estréia da MARS TV. O mundo parou, as guerras cessaram, as ruas ficaram transitáveis, ninguém saiu de casa. Um feriado mundial. É engraçado como eu imaginava que seriam seres alienígenas. A primeira coisa que me vinha à mente eram homenzinhos cinzas apavorantes ou os humanóides com próteses faciais das famosas séries de TV. Até que nossa criatividade e imaginação foram bem acuradas, mas nunca imaginamos algo parecido com MARS TV.
Os projetos que procuravam por vida inteligente nunca achavam nada. O projeto SETI, por exemplo, ficou mais de sessenta anos procurando em vão por transmissões de rádio do espaço, até que finalmente alguns avanços nas telecomunicações mudaram drasticamente o conceito da busca. Em 2023 foi feita a primeira transmissão prática de um pacote de dados por um método chamado de tubulamento quântico. As ondas de comunicação eram atiradas ao espaço através de uma espécie de túnel que as deixava algumas vezes mais rápidas que a velocidade da luz. Espetaculares 109 vezes mais rápidas. Era possível transmitir um feixe de dados a uma distância de 10 bilhões de anos luz em apenas alguns segundos. Na época, eu já trabalhava na Moon Imersion, uma empresa que tinha dois robôs na lua e, através da Internet, qualquer pessoa podia passear pelo solo lunar e vislumbrar o espaço pelos olhos do robô. O tempo da transmissão de dados era bem razoável dado a proximidade com a Lua, mas com a descoberta dessas transmissões tubulares, eu tive uma idéia muito mais excitante. Três anos depois, e 25 milhões de dólares bem investidos, coloquei no ar meu próprio negócio, Mars Imersion, 6 robôs voadores, além de dois robustos robôs de resgate, posicionados em uma base montada na periferia do complexo central Marciano, bem próxima ao Valles Marineris, com seus desfiladeiros de 6 quilômetros de profundidade. Por 5 dólares o minuto qualquer pessoa do planeta poderia pilotar um dos robôs voadores através da atmosfera rarefeita do planeta vermelho. Foi um sucesso por meses. Estava quase terminando de pagar os investidores e sonhando com os lucros quando Rick Stratton apareceu.
Um dos principais especialistas do SETI era Howard Stratton, um cara simpático, bem diferente do filho. A idéia dele foi simples: esquecer as transmissões de rádio e tentar encontrar transmissões tubulares espalhadas pelo espaço. Em poucos meses, ele e sua equipe desenvolveram um dispositivo prático de detecção de linhas de transmissão tubulares independentes e instalou o aparelho em Marte, para fugir das eventuais interferências que a atmosfera da Terra, já abarrotada de transmissões, poderia causar. Foi então que, na data histórica de 12 de Janeiro de 2048, o dispositivo foi ligado. Foi puro êxtase. O aparelho de Howard não só detectou milhões de linhas de transmissão espalhadas pela galáxia, como encontrou um enorme feixe atravessando Marte e se redistribuindo em milhões de linhas infinitas, não se sabe para onde. Howard tinha descoberto a TV a Cabo intergaláctica.
Como que eu faço para colocar esse negócio em pause? Quero mais uma dose de Whisky. Satra, me traz a garrafa de Whisky... Satra?, Nadália? Onde vocês se meteram? Ah, oi, obrigado, pode colocar aqui no meu copo. Não agora não, tenho que terminar esse rascunho mental. O quê? Humm... Isso é muito bom... Calma que eu estou gravando essa droga, vocês sabem como que pausa esse negócio?... Se alguma das duas me disser como eu pauso esse gravador mental, eu volto pra banheira...
PAUSE
REC...
Bem, onde é que eu estava? Certo. Não demorou muito para que o dispositivo de Howard, batizado de Mars Receptor, começasse a decodificar dezenas de imagens que eram transmitidas pelo grande feixe que passava por Marte. É óbvio que o governo foi o primeiro a ter acesso à TV alienígena, que tinha de tudo: registros históricos e lingüísticos, esportes, programas científicos, pornográficos. Mas aos poucos mais e mais imagens começaram a ser liberadas para o público. Foi como ficamos conhecendo os responsáveis pelas transmissões. Foram denominados de Tillianos e eram residentes na outra ponta da Galáxia, milhões de anos luz de distância. Para a surpresa de poucos, eram humanóides pequenos de pele cinza e olhos grandes e negros, provavelmente devido a milhares de anos de evolução em frente à TV. Os Tillianos transmitiam bilhões de diferentes canais, de diferentes sistemas planetários. Aos poucos, o governo foi permitindo mais e mais acesso a certas imagens e programas de entretenimento, esportes e, finalmente, BUM! Através de uma emenda constitucional, os senadores permitiram a transmissão de certos programas diretamente para os lares de bilhões de telespectadores. É aí que entra Rick Stratton e a minha falência teve início.
Com o Mars Receptor patenteada pelo pai e servindo de decodificador central, Rick Stratton conseguiu exclusividade na transmissão dos programas alienígenas e em 12 de Janeiro de 2050 estreou MARS TV. 1075 canais de entretenimento mostrando desde Equinianas fazendo sexo com os tentáculos de um Fargal, os documentários das batalhas que destruíram a galáxia de Andrômeda e, é claro, o maior evento esportivo do Universo. Universal Battles Games. É de se esperar que ninguém mais tivesse interesse em se conectar no meu site para pilotar um robô voador através dos desfiladeiros de Marte, podendo assistir a um gigantesco alienígena reptiliano sendo surrado até a morte por um Dan-Teluriano nanico, cabeçudo e cheio de telecinese. Estava falido. Mas apesar de tudo mantive o site no ar, mesmo com a pressão dos investidores e com os robôs parados.
Eu boicotei pessoalmente MARS TV. Preferia ficar viajando pelos desfiladeiros e planícies marcianas conectado ao meu robô de manutenção e resgate, que apelidei de Rock Marciano. A grande diferença entre Rock Marciano e os meus outros robôs era o tamanho, precisava ser robusto o suficiente para resgatar e carregar qualquer um dos outros de volta para a base se algo acontecesse, tinha que ter a mobilidade de um voador e a aspereza de um robô terrestre. Era uma obra prima da construção civil Japonesa. Com ele escalei Olympus Mons e atravessei os 500 quilômetros de um lado ao outro do Valles Marineris. Andava pelas planícies de Chryse à frente de uma trilha de pó vermelho, para visitar o local do pouso histórico da Viking 1, vendo o horizonte ao longe com seu brilho alaranjado. E o pôr do Sol? Que beleza. O pôr do sol em Marte parecia banhado em ouro.
Foi então que certo dia minha sorte mudou. Recebi uma ligação de nada mais nada menos que o próprio Rick Stratton. Não o conhecia pessoalmente e o odiava, mas mesmo assim resolvi atender o telefone. Rick estava desesperado. MARS TV estava há seis meses no ar, era o maior sucesso da história, tinha bilhões de dólares em investimentos e, logicamente, dívidas e, de repente, de uma hora para outra, poderia desaparecer. Rick havia recebido uma comunicação diretamente da Central Tilliana informando que as atividades de retransmissão de MARS TV eram ilegais e que se Mars receptor não fosse desligado em 24 horas, os Tillianos enviariam um feixe de sobrecarga capaz de fazer um buraco em Marte maior que os vulcões de Tharsis. Não que eu não tenha sido ingênuo, mas quem não acreditaria?
Talvez seja melhor eu mudar o modo de gravação para que a história fique mais vívida, onde pode ser? Ah, deve ser esse botão aqui escrito "mudar modo de gravação". Vamos ver...

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