Para Sempre Marte
por Maria Helena Bandeira
conto publicado em 09.08.2002
republicado em 04.08.2003

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Acordo e olho para cima. Em vez das esperadas folhas da floresta amazônica, um teto liso, iluminado por uma luz esbranquiçada.
Por um momento fui tomado pela sensação angustiante de perda de identidade. Durante alguns segundos não soube quem era, onde estava, perdido numa bruma que foi, aos poucos, se diluindo, à medida que voltava a memória dos fatos recentes.
Não estava em minha casa em New New York com seus holopainéis amazônicos. Não há holopainéis aqui e isto é lógico. Apenas paredes e teto branco, um leito macio e a impessoalidade dos locais de passagem.
Jogo fora o cobertor climatizado e sento na cama. Também não há falsas janelas para criar a ilusão de estar ainda em solo firme. Nada aqui sugere as comodidades psicológicas da Terra. É como tem que ser, consideradas as circunstâncias.
A luz se acende sobre a porta e uma voz suave acaba de me despertar:
"Seu café da manhã, senhor."
Praguejei mentalmente. Porque solicitei refeições ao toque? Agora, cada vez que colocar os pés na prancha metálica do room-service ao lado da cama, terei que pagar por coisas que não consumirei. Na verdade, descobri, espantado, que estava com fome. Dormira algum tempo, (consultei o mini-comp de pulso) exatamente oito horas, desde a chegada à nave e meu estômago, pela primeira vez nos últimos dias, dava sinais de vida.
"Entre." Destravei a porta.
Um jovem negro de excepcional beleza, com toda a certeza um andróide de última geração, entrou com a bandeja e colocou na mesa da saleta ao lado. Estava vestido como um oriental, quer dizer, a interpretação que a Companhia faz dos antigos trajes japoneses, com uma túnica dourada e preta, brilhante, algo soturna na combinação.
Estranha idéia eles têm sobre indumentária, decoração e serviços numa viagem destas... Enfim, nunca passara pela experiência antes, mas sabia que as coisas não iam ser fáceis, com qualquer moldura.
O escravo núbio cibernético me olhava com o olhar parado dos andróides de serviço. Esperava algum movimento de minha parte.
Levantei-me, sentei meu traseiro magro na cadeira confortável (sobre este item não havia o que reclamar - conforto era detalhe primordial nesta viagem) em frente à mesa.
Ele começou a virar as xícaras, retirar os acompanhamentos, colocou o leite, o café, passou manteiga e mel nas torradas, tudo na quantidade certa (para isto serviam, também, os intermináveis questionários pessoais que preenchera antes da viagem e que faziam parte do pacote da Companhia). Depois se inclinou à moda oriental e dirigiu-se para a porta.
Dar gorjetas a um andróide de serviço seria uma gafe e uma descortesia imperdoável. Minha mão, que já se dirigia imperceptivelmente a um bolso inexistente, parou no meio do caminho. Anos de convivência com os garçons humanos dos luxuosos drogars de New New York haviam me condicionado de tal maneira que me senti desconfortável, enquanto o elegante negro transpunha a porta do quarto.
Para meu espanto, a comida era excelente. As torradas exatamente como gosto, biscoitos, brioches, um pedaço de bolo de aipim (não esqueceram nada, os danados), o café e o leite na temperatura ideal.
Senti falta da música. Mas por pouco tempo. Logo os primeiros acordes da Sinfonia em Ré Menor de César Frank inundaram o quarto. Mal tive tempo de me recuperar da emoção, quando a mesma voz suave me advertiu, enquanto um holograma ia se formando com as palavras sobre um estrado em frente a mim:
"Cerimônias religiosas -
Culto católico - Capela 1, plataforma S, setor Laranja
Cultos anglicanos e derivados - Capelas 2 a 10, plataforma S - setor Laranja
Cultos israelitas - Capela 11, plataforma S, setor Verde..."
A voz continuava a repetir intermináveis anúncios de cerimônias para todos os cultos colocados nos questionários pelos participantes. Tinha que admitir: a coisa toda era de uma eficiência e um detalhismo oriental.
Não entendi muito bem porque me informavam os horários de todos os outros cultos, uma vez que já me catalogara como católico apostólico romano, ainda que bem mais romano do que apostólico na vida que levava ultimamente. Talvez se preparassem para a hipótese de uma conversão tardia a um outro credo ou para a necessidade de se proteger em todas as frentes. Quanto mais deuses vindo em nosso auxílio melhor. Era uma colocação pragmática.
O minicomp informa, com minha voz eletrônica, de que são 20 para as 9, horário da Pegasus. Resolvo ir à Missa Espacial. Não tenho mais nada para fazer mesmo. Será uma experiência, no mínimo, única.
A esteira do corredor me leva até a plataforma S, setor Laranja e, finalmente, após um labirinto de corredores brancos, ornados com uma fosforescente linha alaranjada, sou deixado em frente à porta da Capela F, esculpida com motivos católicos. Um Cristo entalhado em madeira me olha com piedade. Ao menos assim me pareceu.
Um arrepio percorre meu corpo, empurro a porta e entro.
A capela está bem cheia. Aqui há um holopainel no teto que se estende até o meio da parede, simulando um céu estrelado. O efeito é bastante convincente e uma tranqüilidade se apodera de mim, mesmo contra a vontade. Talvez seja também efeito da música, do coral beneditino (onde diabos - perdão meu Deus - arranjaram um coral beneditino?), do cheiro de incenso e do imenso altar de mármore branco, diante do qual um padre com paramentos roxos inicia o ofício da Santa Missa.
Ajoelho-me, rezo e as lágrimas começam a correr em minhas faces, pela primeira vez em muitos anos.
O efeito desejado deve ser este mesmo.
O resto da cerimônia transcorria de forma tranqüila e algo tediosa. Impaciente, comecei a observar as pessoas ao meu redor. Todos vestiam as roupas dadas pela Companhia para a viagem - o macacão negro com enfeites violeta - que nos fazia parecer membros de uma tripulação soturna com destino ignorado.
Minha atenção foi despertada pela luz brilhando sobre os cabelos louros de uma jovem sentada quase em frente a mim. Ela se virou ligeiramente e vi que já a conhecia da chegada à nave. Quando fizemos a checagem das roupas e objetos pessoais que seriam devolvidos no fim da viagem. Naquela ocasião ela pareceu extremamente nervosa, destacando-se da massa apática e triste dos outros passageiros.
Senti curiosidade pelo objetivo dela, coisa que não me acontecera com os outros companheiros de jornada. Não apenas porque era bonita - e era - num estilo severo, a pele clara como um modelo da antiguidade renascentista, os olhos sombreados por cílios tão espessos que não havia como definir sua cor. Em todos estes detalhes eu reparara no check-in, por isto a reconhecera tão facilmente. Ela me intrigava porque era diferente de nós. Sua postura, seus gestos nervosos, um ligeiro tique nas sobrancelhas, os dedos que tamborilavam no balcão.
Alguns outros também olharam para ela naquela ocasião, mas pareceram desagradados com sua atitude. Há um acordo tácito entre os passageiros e a tripulação no sentido de virarmos sombras. No sentido de escapar à tentação da individualidade. E aquela moça, com seu aparente desespero, nos incomodava, trazia de volta, com o eu desperto, um sentimento amortecido.
Desviei o olhar dos cabelos que balançavam suavemente. Pareceu-me ouvir soluços quase imperceptíveis e isto me irritou. Concentrei-me na voz suave e algo monótona do padre na homilia. Tudo que dizia eram banalidades, mas era o que precisávamos por enquanto.
Quando a missa acabou, num impulso que eu mesmo não sei explicar, dirijo-me à jovem que acaba de cruzar a porta entalhada:
"Não sei se estou quebrando alguma etiqueta marciana, mas gostaria de conversar com você."
Ela me olhou, espantada, como se voltasse de uma viagem a algum lugar longínquo e, com dificuldade, focalizou em mim um olhar atordoado:
"Pois não?"
Sua voz era gentil, com a gentileza indiferente das pessoas treinadas em lidar com o público.
"Gostaria de conversar com você... quer dizer... estou me sentindo meio sozinho... esta viagem, tudo que nos cerca... os motivos, os métodos, sei lá... acho que senti necessidade de falar com alguém. Desculpe... não sei se foi uma boa idéia... não quero atrapalhar... "

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