R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Downward to the Earth

por Robert Silverberg

uma crítica de Eduardo Torres

publicada em 14.05.2005

Who knoweth the spirit of man that goeth upward, and the spirit of the beast that goeth downward to the earth? ... Ecclesiastes 3:21
(Quem conhece o espírito do homem que se eleva nas alturas e o espírito das bestas que desce às profundezas da terra? ... Eclesiastes 3:21)
Com esse versículo bíblico, Robert Silverberg inicia e dá o título a seu romance Downward to the Earth, de 1969, que li na edição original em inglês publicada em 1971 pela editora Signet.
Downward to the Earth ainda tem ecos da fase juvenil e algo aventuresca de Silverberg. O estilo e as soluções narrativas ainda têm algo da ingenuidade de suas obras da época, mas sentimos uma densidade envolvente que antecipa o mestre completo em que se tornaria nas décadas seguintes.
E é um livro que pega o leitor e não se deixa largar até a última página.
A história começa em 2248, com a volta de Edmund Gundersen ao Mundo de Holman, que por varias décadas foi colônia da Terra.
Durante 100 anos de viagens interestelares, a Terra estabeleceu colônias em vários planetas, muitos habitados e vários com espécies inteligentes, embora menos avançadas tecnologicamente, e que foram obrigadas a aceitar a dominação, com maior ou menor repressão, dos terrestres, que exploraram seus recursos naturais e usaram seus habitantes como mão de obra barata.
Gundersen passou uma década no Mundo de Holman, a serviço de uma companhia responsável pela colonização. Foi a década que mais o marcou. Às vezes pensa que tudo que fez antes ou depois não teve importância. Sente que só viveu de fato naquele planeta.
Mas a situação política da Terra mudou, a sociedade evoluiu seus valores. A colonização forçada de planetas habitados por seres inteligentes passou a ser considerada politicamente incorreta, e teve início um amplo movimento de descolonização e assinatura de tratados de "abandono", onde os planetas nessa situação foram devolvidos aos alienígenas considerados conscientes pelos terrestres. Entre eles estava o Mundo de Holman, que foi devolvido aos nildoror em 2240 e passou a se chamar Belzagor, seu velho nome nativo, imperialmente ignorado pelos humanos em sua estada no planeta.
Gundersen foi um dos milhares de humanos que tiveram que deixar o planeta no seu 'abandono'. Lá deixou lembranças, memórias, amigos, amante — e pecados. Nunca voltou de fato ao fluxo de sua vida. Algo de si sempre ficou no Mundo de Holman — em Belzagor. Uma crescente urgência de voltar ao planeta torna-se irresistível e oito anos depois ele retorna. Para se reencontrar com seu passado? Para poder enfrentar o seu futuro? Para expiar os pecados cometidos durante a colonização? Nem mesmo ele sabe ao certo. Apenas sabe que as respostas estão em Belzagor.
Os nildoror, atuais responsáveis por Belzagor, são seres semelhantes a elefantes, quadrúpedes com tromba e três presas e espinhas nas costas. Pacíficos herbívoros, não têm qualquer tecnologia, não usam roupas, não moram em casas e nem têm cidades. Não têm qualquer forma aparente de governo ou economia e defecam e fazem sexo a qualquer hora e em qualquer lugar. Eram tratados como animais e bestas de carga pelos humanos, inclusive Gundersen. Mas falam, tem uma linguagem e inteligência. Menor que a dos humanos ou apenas diferente? Ninguém sabe ao certo. Muitas coisas são ignoradas sobre os nildoror. Parecem não guardar rancor dos tempos da colonização. Deixaram algumas dezenas de humanos ficarem imperturbados no seu planeta e permitiram a permanência de um espaçoporto e um hotel com manutenção robótica homeostática, e recebem turistas eventuais. No mais, seguem sua vida como sempre fizeram — antes, durante e depois da colonização humana.
Estranhamente, Belzagor tem uma espécie inteligente secundária, chamada sulidoror. Esse evento raro aumenta a aura de mistério do planeta. Os sulidoror são grandes bípedes onívoros (e carnívoros) com grandes braços que acabam em ameaçadoras e afiadas pinças, mas que parecem ser tão pacíficos para com os humanos quanto os nildoror. Os sulidoror são considerados ainda menos inteligentes que os nildoror.
Gundersen sabe que os nildoror professam uma misteriosa cerimônia chamada "renascimento" no País da Névoa ao norte. Gundersen não sabe bem o que é, mas sente que obterá respostas a suas inquietações se conhecer de perto esse ritual, e inicia uma longa viagem pelo interior do continente para descobrir mais sobre ele.
A viagem de Gundersen ao local do renascimento é uma jornada exterior e interior no desconhecido e é claramente inspirada no clássico Coração das Trevas de Joseph Conrad, escrito em 1902 (e que também inspirou o filme Apocalipse Now de Francis Ford Coppola). Os mesmos elementos estão lá: O choque do colonizador com o colonizado e a absorção ou intercâmbio de valores entre os dois. Gundersen viajando para o País da Névoa lembra o Marlow de Conrad à procura de Kurtz escondido na selva, e nesse caminho ambos se transformam. Para não deixar qualquer dúvida ao leitor, um dos personagens, um antigo conhecido de Gundersen que se deixou dominar pelas trevas de Belzagor, se chama exatamente Kurtz.
(Não vou contar aqui como acaba Kurtz mas, depois de ler a vívida descrição de Silverberg sobre seu triste destino, não pude deixar de pensar nas ultimas palavras do Kurtz de Conrad: — O horror! O horror!)
Viajando junto com Gundersen vamos pouco a pouco, como ele e o Marlow de Conrad, questionando os valores da "civilização" e conhecendo (tornando-nos?) os "colonizados". E Silverberg faz um excelente trabalho nessa jornada. Cria um ambiente verossímil de um mundo e de seres absolutamente fantásticos. Vemo-nos, como Gundersen, questionando-nos e revendo nossos valores de civilização e inteligência. Algumas descrições são verdadeiramente perturbadoras.
Gundersen passa por um dolorido processo de redenção e evolução, expiando seus pecados do passado através do conhecimento do verdadeiro Belzagor.
Não vou dar detalhes para não estragar o prazer de quem ainda não leu, mas no final descobrimos coisas surpreendentes sobre os nildoror e os sulidoror, somos apresentados ao conceito de g'rakh (que me ecoou o grock de Um Estranho Numa Terra Estranha de Robert Heinlein), que distingue as duas espécies inteligentes do resto dos seres vivos de Belzagor, e assistimos à transformação final de Gundersen, que de certo modo se integra a Belzagor sem deixar de ser terrestre e, assim como os nildoror, passa por um renascimento.
Como Heart of Darkness, Downward to the Earth é um livro de contrastes. Se aquele falava de civilização e barbarismo e das ambigüidades desses conceitos, este estende a contradição para falar dos contrastes entre os conceitos terrestre e alienígena de civilização, entre como vemos o outro e como o outro nos vê. E como podemos nos conhecer mutuamente e transformar um ao outro e a nós mesmos no processo.
Como Conrad, Silverberg também deixa algumas questões irrespondidas em Downward to the Earth, pois, como dizia o autor de Coração das Trevas: "Ser explícito é fatal para o fascínio de qualquer obra artística, roubando a sugestividade e destruindo a ilusão."
(Ah, se Arthur C. Clarke tivesse seguido esse sábio conselho antes de ter cometido seu 3001...)
Diferente de Conrad, no entanto, Silverberg criou um final que não é de trevas e pessimista sobre a capacidade do homem de conhecer o próprio homem — ou, no caso, outro ser consciente, mas sim de uma nova luz que iluminará o relacionamento entre espécies alienígenas entre si, e que surgiu dessa descida às profundezas da terra.

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Downward to the Earth

por Robert Silverberg

Signet (EUA)

1971

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