R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Amargas Foram as Horas

por Alberto Fontes

uma crítica de Luís Filipe Silva

publicada em 20.10.2001

republicada em 12.06.2003

A Bordo com Benito e o Homem do Pêndulo

Corsários, ataques em alto-mar, aventuras no século XIX, e a promessa do desvendar de uma alma literária caem por terra neste apressado, embora simpático, relato de Alberto Fontes.
 
Amargas Foram as Horas, do galego Alberto Fontes, tem como sub-título «As Aventuras do Pirata Edgar Allan Poe», e é com esta premissa que nos mergulha na aventura de um pretenso texto chegado às mãos do narrador, com data de 1849 (ano da morte de Poe), que revelaria um episódio da vida do famoso escritor nos anos em que, segundo os biógrafos, pouco ou nada se soube dele.
Trata-se da história de um passageiro americano a bordo de um brigue mercante saído de Boston, em meados do século XIX, o Topaz, que irá ser abalroado e capturado por um grupo de corsários a mando de Benito Solo, um dos mais famosos piratas galegos de então. Graças aos seus conhecimentos de espanhol e do funcionamento de um instrumento capaz de medir longitudes, que viajava a bordo do navio, os piratas decidem poupar-lhe a vida - todos os outros tripulantes morrem de forma horrorosa, segundo conta. Enceta então uma literal descida aos infernos, vivendo entre os corsários e tornando-se de facto num deles, ajudando a pilhar navios e a destroçar os passageiros. Finalmente, após dois anos no mar, consegue escapar a nado e ser salvo por um navio americano, conseguindo voltar a casa. Antes, no entanto, conhece Pontevedra, vila que o fascina pela sua história e diferença.
Assim resumida, a narrativa promete interesse. A execução, contudo, não corresponde às expectativas.
Alberto Fontes é, segundo a mini-biografia da contracapa, marinheiro e escritor, e devotou muitos anos ao serviço em barcos de pesca e navios mercantes antes de se dedicar a uma profissão menos agitada; conhece corsários, tendo publicado um estudo sobre eles. Quanto a Pontevedra, é a sua terra natal.
Este conhecimento extravasa - não: transborda no livro. A história, que acaba por não ser mais que uma noveleta, está contada à moda do século XIX, sem os artifícios de tempo e narração que o cinema impuseram sobre a literatura das últimas décadas - de longe um defeito, quando bem aproveitado.
O problema é que o autor demonstra demasiado da sua sabedoria de termos e situações náuticas para conduzir uma narrativa em que o espaço interior não existe. Pouco sabemos das aspirações do jovem protagonista, das saudades de casa, da inspiração criativa dos oceanos, do temor inspirado pelo cativeiro. Não sabemos se terá sido em pleno mar que este pretenso Poe pensaria no Maelström, se sonharia com o poço e o pêndulo, se Usher tombaria por terra ante o soçobrar de toda a dignidade humana. Para o leitor de Poe, conhecedor da abordagem atmosférica, quase kafkiana, dos contos, mestre absoluto no domínio da língua inglesa, não encontrar sequer o mínimo resquício desta personalidade, acaba por deitar por terra o argumento quer do narrador quer do próprio autor. Poe não se encontra no livro, o passageiro a bordo do navio poderia ser qualquer um, e mesmo Benito Soto surge com uma intensidade maior.
O que acaba por ser um triste defeito, pois percebe-se que Fontes conhece bem a biografia de Poe. Inventa o artifício de que o autor se esconderia sob o nome de William Wilson (título de um dos seus contos), e que aquela aventura constituiria a base para o famoso As Aventuras de Arthur Gordon Pyn.
Como se ele próprio se apercebesse disto, Fontes lança o narrador, na segunda metade do livro, numa senda no tempo presente de indícios que comprovassem a identidade do autor do relato. Que tenha escolhido Pontevedra para desvendar o mistério, e ficado convencido por se aperceber que paisagem e factos históricos coincidem, apenas revela a imaturidade de Fontes, pois os argumentos finais nem são cativantes nem entusiasmantes - e não é lançando elementos de pesquisa histórica à toa que se convence o leitor.
Não é a primeira vez que Poe se transforma em personagem de histórias alternativas sobre a sua vida. Detentor de uma biografia com algumas lacunas interessantes, e marcado por um temperamento a que a bebida nada ajudava, Poe foi considerado por Hugo Gernsback (o «pai da ficção científica», no sentido de que foi ele a inventar e popularizar a designação do género), como um dos autores, a par de Júlio Verne e H. G. Wells, cuja abordagem literária exemplificava o novo tipo emergente de narrativas: não tanto o terror e o fantástico, mas o racionalismo e a dedução lógica subjacente, que daria aliás origem ao actual género policial. Um dos romances melhor conseguidos acaba por ser The Hollow Earth, de Rudy Rucker, em que o autor se junta a um casal para partir na senda do mito da terra oca, e, sim, daí nascer a história de Gordon Pyn acima mencionada.
Se há a saudar esta edição, é pela frescura de nos mostrar um autor vizinho, e dar entrada no mundo do fantástico espanhol, que se encontra em crescimento sustentado. Mas se quiserem conhecer uma história alternativa bem conseguida em castelhano, procurem o romance La Locura de Dios, de Juan Miguel Aguilera, que conta as viagens de um certo Ramón Llull pelas terras de uma Ásia bastante diferente.
Em particular, os editores portugueses que estejam a ler esta crítica...

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Amargas Foram as Horas

por Alberto Fontes

Editorial Teorema

 tradução de  Pedro Abreu

2001

Luís Filipe Silva escreveu:

 

Terrarium

com João Barreiros

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1996

(leia a crítica de Jorge Candeias)

Galxmente - Cidade da Garne

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1993

Galxmente - Vinganças

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1993

O Futuro à Janela

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1991

A Recordação Imóvel

 

No Coração do Deserto

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