R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Terror em Pedra Torta

por Gerson Lodi-Ribeiro e Miguel Carqueija

conto publicado em 24.10.2001

republicado em 05.03.2004

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Caminhei até a porta e a abri para ele. Despedimo-nos friamente.
Somente depois de trancar a porta percebi o quão tresnoitado eu me sentia. Aflito, pensei no que deveria fazer. O mais fácil seria dormir, como o corpo e o espírito exaustos me exigiam. Mas algo me dizia que era melhor seguir uma das sugestões do visitante.
Devia ter tomado o maldito sonífero que o Álvaro sugerira. Um comprimido de Royphinol, por exemplo... Mas foi justo o tom de autoridade e condescendência dele que acabou me atingindo como um desafio. Por que tipo de covarde ele me tomava? Já tivera pesadelos antes, pesadelos terríveis... Mas, depois daquela conversa, a situação mudou de figura. Com ou sem Testamento do Mal, com ou sem os excertos do Necronomicon, eu iria dormir, sim senhor. E sem aquela porcaria de Royphinol!
Por incrível que pareça, a decisão de enfrentar as feras me acalmou um pouco. Minutos depois, quando vestia o pijama, o primeiro bocejo me fez uma surpresa agradável. Quem sabe se, apesar dos pesares, eu não teria uma boa noite de sono?
Tirei a colcha da cama, ajeitei o travesseiro e me deitei, puxando até o pescoço o cobertor forrado por dentro com um lençol. Ainda pensei numa leitura amena para chamar o sono, mas um novo bocejo me levou a reconhecer que ele já respondera "presente", não sendo necessário qualquer convocação adicional.
Ainda pensei em abrir a porta do quarto para deixar a Laika entrar. Mas... a quem estava tentando enganar? O diabo da cadela era mesmo diferente! Sempre ouvi dizer que os cachorros tinham medo de tempestades. Laika era exceção: conseguia dormir tranqüila num casarão sacudido pelas trovoadas.
Ah, eu não precisava de um animal dormindo perto para me sentir mais seguro, tentei convencer-me com relativo sucesso.
Apaguei a luz do abajur que fazia questão de manter sobre o tampo da mesa de cabeceira. Cerrei os olhos e, em meio aos relâmpagos, que iluminavam os céus mesmo por trás das pálpebras e das cortinas fechadas das janelas, e aos trovões que ora roncavam distantes, ora explodiam bem próximos, adormeci como um bloco de granito.
 
Acordei no meio da noite. A chuva já não martelava o telhado com vigor inaudito e as trovoadas também haviam parado. O silêncio soava estranho, quase sobrenatural, depois de tantas horas de barulho. O quarto estava imerso numa escuridão viscosa e pesada, algo onírica, como se eu houvesse mergulhado num barril de piche. Perguntei-me se estava de fato acordado.
Foi então que pressenti um vulto em pé ao lado da cama.
Fechei os olhos de puro terror!
Transido de medo, demorei um bocado a reunir a dose de coragem necessária para me convencer a abrir os olhos na escuridão. Sim! Havia alguém ali. Um par de pequenos tições amarelos me observavam impassíveis. Não, um par não... Dois, três, quatro pares de olhos luminosos. Quatro pontos brilhando num fulgor rubro e os outros quatros cintilando em amarelo.
— Quem... quem são vocês? — Minha voz soou bem mais trêmula e aguda do que eu pretendia, mas a pergunta desengasgou da minha garganta logo à terceira tentativa. — O que querem em minha casa?
Uma voz grave respondeu, tão rouca que no início não entendi:
"O Livro... Viemos buscá-lo... E a você!"
Ah, então era isto! Primeiro a visita do Álvaro, a conversa sobre o livro e aquele papo careca das precipitações pluviométricas, os conselhos, e depois, essas aparições noturnas...
— Fora daqui! — Minha mão se estendeu ao interruptor do abajur. — Não admito brincadei... ai, meu pulso!
Alguma coisa — maior, muito mais forte e, sobretudo, mais peluda que uma simples mão humana — agarrara meu pulso e o torcera num ângulo impossível. Em meio àquela dor lancinante, tive a impressão de sentir o estalo de articulação.
Outro par de olhos rubros se aproximou da mesa de cabeceira com movimentos tão rápidos que por um momento pensei que iria colidir contra a cama. Uma centelha breve na tomada e um estrondo na parede oposta revelaram o fim do belo abajur vitoriano que eu herdara de meu avô, embora no momento aquela fosse a última das minhas preocupações.
"Vamos, humano. Você virá conosco."
"Não vai não!"
Um novo vulto de olhos vermelhos incandescentes estava parado no portal do quarto. Aquela voz... Parecia algo familiar, embora jamais a tivesse ouvido soar num tom tão grave.
Os outros vultos se viraram para enfrentar o recém-chegado.
"Como ousa desafiar os desígnios dos arcanos? Você sabe qual é a pena para a desobediência?"
"Não me importa. Estou disposto a tudo!"
Ouvi dois rosnados graves, um de cada lado da cama. Meu pulso foi libertado e o vulto à minha direita deslizou em direção à porta.
O quarto se iluminou quando o jato de fogo explodiu com um rugido, atingindo em cheio o vulto que se afastava da cama.
Senti meus joelhos tremendo como caniços de bambu num vendaval.
E se o quarto se incendiasse?
A criatura alvejada caiu no tapete, estrebuchou um pouco e lançou um uivo de agonia. Senti um cheiro terrível de pelos chamuscados no ar cada vez mais abafado do quarto.
"Idiota! Tudo isto é inútil! Rostrand vai se recuperar em minutos... Imagino que ele próprio fará questão de te cortar em pedaços!"
"Não creio que ele faça questão de mais nada... Eu coloquei sais de prata no morteiro."
"Ah, maldito! Você assassinou Rostrand!"
"É isto aí, Dieguez. E tenho mais dois morteiros aqui, prontos para estourar essa tua cara peluda!"
A ameaça surtiu o efeito de um pedregulho arremessado nas águas plácidas de um lago. Os três vultos à volta do meu leito estacaram e trocaram olhares fulgurantes, parecendo confabular em silêncio.
"Muito inteligente, irmão. Tudo bem, você pode ter morto Rostrand e até derrubar Dieguez. Mas e quanto a nós dois? Pretende se bater contra o seu próprio gênero para defender a alma de um reles humano? Neste caso, é melhor pensar bem. A prata não vai funcionar..."
Como se a última frase fosse uma senha de ataque, os três vultos que cercavam a minha cama avançaram juntos contra o que chegara mais tarde.
"Desista, irmão! Ainda há tempo de escapar desta enrascada."
"Isto é que não! Ando farto dessas mortes... Vamos deixar os humanos em paz!"
"Precisamos deles para viver. Os humanos são como que o nosso gado. É para isto que eles servem, esqueceu-se?"
"Mas não precisamos matá-los!"
"Ah, esses jovens cheios de escrúpulos..." Ecoou uma voz feminina. "Eu sabia! Deixá-los viver como humanos só podia dar mau resultado."
Os vultos continuaram se aproximando lentamente do meu defensor, que permanecia parado junto à porta.
Ele seria capaz de sobrepujar sozinho três oponentes? E, se fosse derrotado, o que aqueles invasores macabros fariam comigo? Estremeci ao pensar nas parcas hipóteses que me restavam.
"Eu já disse que vocês não vão levar o meu amigo!"
Uma nova explosão iluminou o quarto num clarão de brilho intenso. Melhor preparado do que da primeira vez, pude ver a trilha de fogo branco se estender da porta até a criatura peluda que distava menos de um metro do pé da cama. Um fulgor brevíssimo se espalhou pelo tórax e o rosto da criatura, que tombou com um ganido aflitivo.
Se aquilo era o que eu pensava que era, os tais sais de prata deveriam envenená-lo, conduzindo-o a uma morte rápida, mas nem por isso menos indolor.
Depois de uma certa hesitação, os dois vultos sobreviventes continuaram avançando em direção à porta. Mais um morteiro explodiu, atingindo um dos atacantes em cheio. A criatura alvejada emitiu um miado roufenho mas, ao contrário das vezes anteriores, continuou caminhando como se não houvesse sofrido danos. Pude notar que ela era muito mais parecida com um ser humano do que os dois monstros peludos que jaziam mortos fumegantes no meu tapete.
Não consegui perceber que medidas meu defensor empregou contra os inimigos, mas de repente aquele que falava como se fosse o líder, mudou de tom, passando ao de súplica:
"Não, Álvaro... Largue isto no chão! Vai matar-nos a todos!"
Então pude ver meu defensor. Era Álvaro de fato! Havia uma espécie de archote na sua mão esquerda. Os outros dois, o homem que parecia ser o líder e a mulher pálida mas muito bela, recuaram assustados.
Mas o que era aquilo? A chama do archote se espalhou pelo punho do meu amigo, envolvendo-lhe a mão e o pulso num brilho azul-amarelado.
Dando um passo à frente, Álvaro brandiu o archote como um sabre, estocando o peito da mulher.

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