Pátrias de Chuteiras
por Gerson Lodi-Ribeiro
noveleta publicada em 07.04.2002
republicada em 11.10.2003

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Nascimento olha para ele mas não responde ao soba. Seus jogadores cercam o juiz pedindo o gol. O capitão Angoma aponta para o grande círculo. O árbitro faz que não com o indicador. Consulta o bandeirinha. Este aponta para a meta de Marquinhos. O árbitro reitera a decisão, deixando palmarinos inconformados e brasileiros jubilosos.
Finalmente, o juiz dispersa o tumulto distribuindo cartões amarelos para Angoma e Liyongo Dias, consulta o seu cronômetro e apita, ordenando que a bola, ainda com Marquinhos, fosse reposta em jogo.
- Tudo bem, - fala Nascimento, mais para si mesmo do que para o soba a seu lado, - na prorrogação a gente leva o caneco.
- Acho bom mesmo! - Responde Mzambi.
"... QUARENTA E SETE DA ETAPA FINAL, DOIS MINUTOS ALÉM DO TEMPO REGULAMENTAR, 2 X 2 NO PLACAR DO ESTÁDIO KENNEDY. PALMARES NO ATAQUE. SAVIMBI ARRANCA PELA PONTA, RODRIGUES VEM PARA O COMBATE, SAVIMBI PASSA PELO LATERAL, AVANÇA COM PERIGO PELA INTERMEDIÁRIA BRASILEIRA, TOCA PARA DIAS PELO MEIO, DIAS MATA NO PEITO, PÁRA A BOLA, TEM NGOMO LIVRE NA MEIA-LUA. LANÇA PARA O ARTILHEIRO, NGOMO CONTROLA A PELOTA, DRIBLA TUCÃO, BATE NO CANTO... MARQUINHOS! É CÓRNER! UMA DEFESA ESPETACULAR DE MARQUINHOS ESPALMANDO PARA A LINHA DE FUNDO. CHEIO DE MORAL, O GOLEIRÃO DO BRASIL. TIRO DE CANTO PARA A SELEÇÃO DE PALMARES. E O BRASIL VAI SUPORTANDO COMO PODE ESSA PRESSÃO TREMENDA DAS FERAS DO NASCIMENTO... UMA BARRA, NÃO É, GÉRSON?"
"EXATO, CAMARGO. O GRANDE NEGÓCIO AGORA PARA AS DUAS EQUIPES É NÃO ARRISCAR E LEVAR A PARTIDA PARA A PRORROGAÇÃO."
Nascimento gesticula para o time ir todo para o ataque. Atacantes e defensores palmarinos estão dentro da área brasileira, esperando que Savimbi efetue a cobrança do escanteio. Todos os brasileiros se comprimem na marcação dos adversários. Até os atacantes brasileiros circulam na grande área e na meia-lua, auxiliando o trabalho da defesa.
Somente o zagueiro Farofa permanece no grande círculo e, é lógico, Wirapuru, afastado de sua meta, esfregando as grandes mãos enluvadas uma contra a outra, num gesto característico, em plena meia-lua do seu campo de defesa.
Savimbi cobra curto para Liyongo Dias e corre para a linha lateral da grande área. Dias devolve para Savimbi, iludindo a marcação de Rodrigues. Savimbi domina e cruza para a meia-lua. A bola vai descendo na medida para Angoma, mas o atacante está de costas para a meta brasileira. A marcação aperta; não há tempo para se virar. Então, num lance de gênio, Angoma dá uma meia bicicleta, acertando um tiro de canhota e mandando a bola na última gaveta de Marquinhos. Bem colocado, o arqueiro brasileiro sobe e agarra, descendo com a bola encaixada no peito.
A grande jogada do centroavante palmarino faz Nascimento lembrar uma outra parecida, na final da Libertadores de 1969, quando marcou de bicicleta o gol da vitória do Visconde de Caxias sobre a equipe holandesa do Nassau de Recife.
O técnico observa o goleiro adversário repor a bola em jogo com um chute para a frente. Ela aterrissa em cima do meia Sólon, na altura da intermediária brasileira. Ele mata a bola no chão, avança alguns metros em direção ao campo adversário. Olha em volta, à procura de um companheiro de ataque ao qual pudesse fazer um de seus temíveis lançamentos em profundidade.
Sólon não vê ninguém. É o homem mais avançado de uma equipe acuada na defesa. Então, ainda correndo com a bola, já quase na altura da linha de meio-campo, repara na posição avançada de Wirapuru.
Sem alternativa de jogada, o armador brasileiro chuta do interior do grande círculo, ainda em seu próprio campo. A bola sobe, o estádio se queda em silêncio para observar a trajetória.
Nascimento berra, mas o grito sai rouco. Mzambi se levanta, boquiaberto, sem acreditar no que está presenciando.
Wirapuru olha para o alto, vê a bola se aproximando, abre a boca, pasmo de espanto, então cerra os punhos, assustado. Volta-se para sua própria meta e inicia uma corrida a passos largos, recuando para o arco desguarnecido.
A bola começa a descer. Passa metros acima da cabeça do goleiro, que dispara em desespero para a pequena área.
Nascimento observa todo o lance como se este transcorresse em câmera lenta.
Wirapuru galopando como um puro-sangue, as passadas largas, os músculos tensos, os tendões do pescoço distendidos, prestes a se romper; a cabeça voltada para trás, tentando encontrar uma bola que já estava muito à sua frente.
A bola chegando ao fim de sua trajetória. Nascimento se lembra do quão bom Sólon costumava ser nos lançamentos em profundidade. E se lembra também da lenda que afirma ser o meia brasileiro capaz de fazer a bola descer sobre um lenço aberto depois de um lançamento de setenta e poucos metros de distância...
A bola aterrissa em cheio na meta de Wirapuru, atingindo o gramado cerca de um palmo antes da linha de gol. A pelota quica para o alto e estufa as redes de Palmares.
O estádio permanece mudo. As torcidas não acreditam no lance que acabaram de presenciar. Os jogadores palmarinos param de correr em direção ao seu próprio campo, muitos colocam as mãos na cabeça, a consternação se encontra expressa nos semblantes de todos.
Os jogadores brasileiros também parecem incrédulos, mas seus olhos brilham de felicidade. Vários deles gritam o nome de Sólon. A torcida brasileira enfim desperta e começa a gritar de forma alucinada, logo acompanhada pela americana: "É campeão! É campeão!"
Nascimento olha para as arquibancadas. Um mar azul se desfralda na torcida brasileira. Um mar azul cobalto brilha com estrelas amarelas em seu interior. Sente um arrepio estranho de emoção dentro de si, um contentamento inoportuno mas muito forte e agradável, como se estivesse satisfeito com a vitória brasileira, praticamente assegurada.
Sempre teve vontade de marcar um gol daqueles. Uma vez, quando jogava pela seleção na Copa do México, quase conseguiu... Quase...
É quase como se estivesse, de algum modo, feliz pelo gol de Sólon. Afinal, foi ele quem descobriu o garoto, então um juvenil no Visconde de Caxias, durante seu primeiro emprego como técnico.
Os brasileiros correm para Sólon, que é abraçado, beijado e erguido do chão por seus companheiros, sendo carregado em triunfo para fora do grande círculo.
Lágrimas molham as faces de vários jogadores brasileiros. A maioria dos palmarinos cerra os maxilares, esforçando-se para não chorar. Quase todos conseguem se controlar, menos Wirapuru que, chorando como criança, retira a bola do fundo das redes, chutando-a em direção ao grande círculo, para que a nova saída pudesse ser dada sem demora.
"UM GOLAÇO! UM GOL DE PLACA! SÓLON, OITO NA CAMISA! SÓLON, O SALVADOR DA PÁTRIA BRASILEIRA. AGORA, NO PLACAR, BRASIL 3, PALMARES 2... FESTA AURI-AZUL NO ESTÁDIO KENNEDY! É O BRASIL A UM FIO DE CABELO DO TRICAMPEONATO MUNDIAL E DA POSSE DEFINITIVA DA TAÇA JULES RIMET. NÃO ADIANTA CHORAR, WIRAPURU! A NÊGA TÁ LÁ DENTRO!"
A saída é dada. Liyongo Dias estica para Angoma, este toca para Ngomo, mas vem Douglas e isola de qualquer maneira pela linha de lado.
Desesperado, Temba corre para pegar a bola. Cobra o lateral. A bola cai nos pés de Savimbi, ele arranca, passa por Rodrigues, mas Luizinho aperta na marcação, estoura com o ponta palmarino e a bola acaba saindo. O bandeira dá lateral para o Brasil.

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