Pátrias de Chuteiras
por Gerson Lodi-Ribeiro
noveleta publicada em 07.04.2002
republicada em 11.10.2003

Página: 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7

"A SELEÇÃO É A PÁTRIA DE CHUTEIRAS."
[NELSON RODRIGUES, DRAMATURGO E DIPLOMATA BRASILEIRO]
JULHO DE 1986.
JOHN F. KENNEDY MEMORIAL STADIUM - FILADÉLFIA - E.U.A.
FINAL DA DÉCIMA QUINTA COPA DO MUNDO DE FUTEBOL.
Nascimento transpira em abundância, molhando a camisa branca de linho, embora o calor desse dia ensolarado de verão na Pensilvânia não o incomode tanto assim. O que sentirá quando ouvir os primeiros acordes do hino nacional brasileiro? Quando fitar a bandeira de seu país, agora a seleção adversária, hasteada num mastro deste estádio?
Os titulares e reservas das duas seleções finalistas estão alinhados de pé no centro do gramado do Kennedy Stadium. O público de quase cento e vinte mil pessoas faz silêncio absoluto em respeito aos hinos nacionais que estão prestes a ser executados.
Primeiro vem o hino de Palmares. A bandeira verde com o carcará negro de asas abertas no centro é hasteada lentamente. Nascimento não consegue ver dali, mas sabe que o carcará da Primeira República carrega uma lança, um caule de cana-de-açúcar e uma luneta nas patas cerradas.
Disfarça e olha em volta, examinando as arquibancadas do estádio. Há três torcidas distintas: a palmarina, presente em números expressivos no lado oeste; a pequena e ruidosa torcida brasileira, distribuída nas arquibancadas do extremo leste, e a vasta maioria norte-americana, que os organizadores decidiram colocar no centro, para separar os torcedores palmarinos e brasileiros. A torcida americana deveria ser francamente favorável a Palmares, até por razões históricas. Afinal, durante a Guerra de Secessão, os carregamentos de armas e munições palmarinas adquiridas pelo Norte foram desembarcadas ali, em pleno porto de Filadélfia. Mas, como Nascimento receava, a derrota humilhante do time da casa ante os palmarinos nas semifinais, e a conseqüente demolição do sonho de disputar sua primeira decisão de Copa do Mundo, havia feito com que muitos americanos presentes no estádio empunhassem bandeiras azuis cobalto do Brasil.
Como cabeças de sua chave, os palmarinos jogaram na Filadélfia desde o início do torneio. A seleção brasileira também foi cabeça-de-chave. Contudo, ao contrário da adversária, jogou no sul dos Estados Unidos desde as oitavas-de-final, pois lá a simpatia pelos brasileiros era maior. Na semifinal Brasil x Alemanha, disputada em Atlanta, a seleção comandada por João Saldanha Filho derrotou a poderosa seleção alemã, despachando para casa os atuais campeões mundiais e francos favoritos para jogar a final contra Palmares. Uma vingança e tanto pela derrota sofrida na final da Copa do Mundo da Espanha, há quatro anos.
Alinhados a seu lado, os jogadores de Palmares vestem os tradicionais calções negros e as camisas verdes-esmeralda com o desenho estilizado de um grande carcará negro emblemado no peito. Já a seleção brasileira vem com seu segundo uniforme, aquele que nos seus tempos de jogador era apelidado de canarinho - camisas amarelo-ouro e calções azuis - o justo inverso do uniforme principal.
O hino de Palmares se encerra. Os pupilos de Nascimento relaxam da postura hirta mantida durante a execução do Primeira Nação Livre da América. A banda do U.S. Marine Corps se prepara para executar o hino brasileiro. Nascimento sente que as atenções dos jogadores de ambas as seleções e das três torcidas se voltam para si.
A bandeira brasileira começa a ser içada no outro mastro. O pavilhão azul cobalto com trinta e duas estrelas amarelas que representam tanto os astros mais brilhantes da constelação do Cruzeiro do Sul quanto os estados e territórios do país. Encimando as estrelas, a frase em letras brancas: "Paz no futuro e glória no passado". Um retângulo de pano azul pontilhado de ouro que foi ensinado a amar desde menino e que viu hasteado centenas de vezes quando defendeu as cores do Brasil como jogador.
O hino começa. Sente as lágrimas umedecendo os cantos de seus olhos e escorrendo por suas faces. É a primeira vez que isto acontece. "... defendendo o solo pátrio, do São Francisco ao Chuí", Nascimento se surpreende mordendo os lábios para impedir-se de cantar o hino. Num ato reflexo, leva a mão direita ao peito, pousando-a sobre o coração. Fecha os olhos, para não arriscar sequer um olhar para os lados. Tem certeza absoluta de que os seus jogadores, o soba e os outros membros da comissão técnica o estão fuzilando com os olhos neste momento. Desconfia de que, independentemente do resultado da final, seja bem provável que jamais volte a ser o técnico da seleção de Palmares.
"É INCRÍVEL, CAROS HOLOESPECTADORES! NASCIMENTO DOS SANTOS, O ATLETA DO SÉCULO, O MAIOR JOGADOR DE TODOS OS TEMPOS, O ÚNICO BRASILEIRO A VENCER DUAS COPAS DO MUNDO, EM 58 NA SUÉCIA E EM 70 NO MÉXICO, E ATUAL TÉCNICO DA SELEÇÃO DE PALMARES... TODOS VOCÊS NOTARAM QUE, EMBORA TENHA MANTIDO OS LÁBIOS CERRADOS, NO FUNDO DE SUA ALMA O NOSSO NASCIMENTO ESTAVA CANTANDO O HINO DO BRASIL! UMA RESPOSTA À ALTURA PARA TODOS AQUELES QUE O ACUSAVAM DE TER VIRADO A CASACA. NASCIMENTO, O HOMEM DOS 1.400 GOLS, MARCADOS PELA EQUIPE PAULISTA DO CAXIAS F.C. E PELA SELEÇÃO BRASILEIRA! NASCIMENTO..."
Pressiona suavemente a têmpora direita com a extremidade do dedo indicador, desligando o áudio de seu link-satélite pessoal com uma das redes brasileiras que cobrem a grande final. Não importa o que faça. No Brasil sempre haverá torcedores que o considerarão um traidor pelo fato de ter aceito o convite para comandar a seleção de Palmares. No que diz respeito à Primeira República, ele acaba de marcar mais um tento no placar da desconfiança que muitos dos hierarcas da velha guarda nutrem contra ele.
Não tem a mínima dúvida de que a exploração desse seu "impulso patriótico" pela mídia palmarina irá dificultar ainda mais o seu tortuoso processo de naturalização...
Paciência.
"O BRASIL COMEÇA COM MARQUINHOS NO GOL; MÁRCIO SOARES E TUCÃO FECHANDO A ZAGA; RODRIGUES E LUIZINHO NAS LATERAIS; ZEDUARDO, DOUGLAS E SÓLON NA ARMAÇÃO; E NO ATAQUE, FALCÃO (JÁ RECUPERADO DA CONTUSÃO SOFRIDA NA PRORROGAÇÃO DA PARTIDA CONTRA A ALEMANHA), TICO E ZEQUINHA. NOSSO TÉCNICO É O POPULAR MAJOR JOÃO SALDANHA, FILHO DO FAMOSO TÉCNICO QUE COMANDOU A CAMPANHA DO BI EM 1970.
"A SELEÇÃO DE PALMARES VEM COMPLETA PARA A DECISÃO, COM WIRAPURU, FAROFA E SAMANCO; ARAÇARI E PAULO NHANDU; TEMBA, SHAGGA E LIYONGO DIAS; SAVIMBI, ANGOMA E NGOMO, O ARTILHEIRO DO CERTAME ATÉ AGORA. COMO TODOS SABEM O TÉCNICO DE PALMARES É O GRANDE HERÓI BRASILEIRO DE QUATRO COPAS, NASCIMENTO DOS SANTOS.
"OBSERVAMOS AO HOLOESPECTADOR QUE ESSA É A PRIMEIRA SELEÇÃO DE PALMARES A CONTAR COM UM JOGADOR BRANCO ENTRE OS TITULARES. DIZ-SE QUE LIYONGO DIAS FOI CONVOCADO GRAÇAS À PERSEVERANÇA E AO PRESTÍGIO DE NASCIMENTO NOS ALTOS CÍRCULOS DA PRIMEIRA REPÚBLICA. EMBORA TENHA CONCORDADO COM A ESCALAÇÃO DE DIAS ENTRE OS TITULARES, A COMISSÃO TÉCNICA ADVERSÁRIA AINDA INSISTE EM AFIRMAR QUE O MEIA-ARMADOR É DE FATO MULATO CLARO E DESCENDENTE LONGÍNQUO DO HERÓI MILITAR PALMARINO, HENRIQUE DIAS... ACREDITE SE QUISER."
Nascimento sorri ao pensar naquela conversa fiada que a Secretaria de Estado inventou e obrigou a comissão técnica a divulgar como condição sine qua non para autorizar a convocação de Liyongo...

Página: 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7
Gostou deste texto? Ajude-nos a oferecer-lhe mais!
|