R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Pátrias de Chuteiras

por Gerson Lodi-Ribeiro

noveleta publicada em 07.04.2002

republicada em 11.10.2003

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- Esperemos, então, - replica Nascimento em português, - que o resultado final seja semelhante ao dessas guerras.
Porque tanto enquanto colônia, quando depois da independência, primeiro como Império e mais tarde, já como República no segundo quartel deste século, o Brasil jamais conquistou uma vitória militar decisiva contra a Confederação de Palmares. Apenas derrotas fragorosas, seguidas por vastas perdas de território, e algumas situações de impasse onde a paz acabou sendo assinada sem que nenhum dos lados obtivesse as vantagens claras que havia almejado no início do conflito.
O soba da comissão técnica abre um sorriso, assentindo com um gesto da cabeça.
Aos quarenta e três minutos e cinqüenta segundos, após receber um lançamento em profundidade do meia Sólon, Zequinha invade a área palmarina, dribla o zagueiro Farofa mas tromba com Samanco e cai estendido no gramado. As três torcidas se erguem ululantes. O juiz britânico aponta para a marca do pênalti.
- Ah, não... - suspira Nascimento, levantando-se.
A jogada foi confusa, mas teve a impressão de lance normal. De onde está, pareceu-lhe que Samanco havia entrado na bola.
- Merda! - Exclama Mzambi, também de pé. - Isto é manha desse branquelo! Ele se atirou sozinho...
Nascimento retira do bolso da camisa um par de óculos escuros. Coloca no rosto e ativa a parte visual de seu link-satélite, um item de alta tecnologia cujo emprego civil ainda é privilégio exclusivo dos cidadãos de Palmares. Passa a receber a holotransmissão de sua rede predileta com uma resolução em muito superior à de sua vista desarmada. Observa os jogadores palmarinos cercarem o juiz para reclamar. Samanco gesticula, explicando que não havia cometido falta alguma no atacante brasileiro. Como se a explicação pudesse alterar algo. Em todos os seus anos de futebol, Nascimento jamais viu um juiz voltar atrás na marcação de uma penalidade máxima.
Murmura baixinho: "Vinte segundos."
Examina a repetição da jogada que culminou na marcação do pênalti em câmera lenta e de vários ângulos. Com o canto dos olhos percebe que Mzambi e vários reservas fazem o mesmo em seus respectivos links.
Revê o lance. Zequinha driblando Farofa, deixando o zagueiro para trás na corrida. Samanco se adiantando, fazendo carrinho. Os pés do defensor palmarino tocam primeiro na bola, realizando o corte e, logo a seguir, raspam no tornozelo direito do atacante brasileiro. Esperto, Zequinha se atira ao solo ao se perceber desarmado. Tudo muito rápido. O árbitro estava a cerca de vinte metros do lance e não dispõe de um link-satélite...
- Porra, eu não te falei, Nasça? O filho-da-puta do Zequinha se jogou sozinho! Puta-que-o-pariu! De brasileiro a gente não podia esperar outra coisa... - Mzambi parece prestes a espumar de raiva. Depois cai em si. - Me desculpa, Nasça, eu quis dizer, de branco brasileiro.
- Tudo bem. Não foi pênalti mesmo.
Ele encara a atitude de Zequinha com a naturalidade de quem já aplicara esse mesmo golpe diversas vezes em seus tempos de jogador. Se for bem feito dá certo com uma freqüência surpreendente.
Falcão coloca a bola na marca de pênalti. Toma distância.
- Esse aí não perde pênalti, meu ganga. - murmura-lhe Bitonga, um reserva que joga com o centroavante brasileiro no Esporte Clube Ganga Zumba, um dos quatro grandes da região metropolitana de Salvador.
- É, tenho visto nos holos... - concorda Nascimento.
O juiz apita, autorizando a cobrança. Falcão corre para a bola e cobra sem afobação, chutando colocado no ângulo direito. Wirapuru salta para o canto correto, ainda consegue tocar a bola com a ponta dos dedos. Mesmo assim, ela acaba parando no fundo das redes.
- Pronto! Voltamos à estaca zero... - O soba da comissão técnica reclama, desanimado.
- Calma. - Nascimento tenta consolar. - Temos o segundo tempo inteiro para mudar esta situação.
Menos de um minuto depois da seleção de Palmares ter recomeçado o jogo, o árbitro aponta para o meio de campo, dando por encerrada a primeira etapa da decisão com o placar parcial de 1 x 1.
 
Nascimento varre o vestiário com o olhar. Todos os jogadores, titulares e reservas, reúnem-se à sua volta para as instruções do intervalo. Observa Mzambi sentar-se cauteloso numa poltrona próxima. O soba equilibra com ambas as mãos um copo atopetado de café fumegante, recém-tirado de uma máquina automática.
O técnico sabe que o dirigente mais jovem não interferirá na sua orientação aos jogadores. Depois de dois anos trabalhando juntos, os dois homens haviam desenvolvido um forte sentimento de respeito mútuo. Há entre eles uma aliança sólida e até mesmo, considera Nascimento, uma amizade sincera, não admitida facilmente por quaisquer das partes.
- Tudo bem. - Nascimento fala num tom calmo e pausado, que costuma transmitir confiança aos jogadores. - Sei que não foi pênalti. O Zequinha se jogou dentro da área. Mas o juiz marcou, o Falcão cobrou e converteu. Faz parte do jogo. Fim de papo!
- Mas, ganga...
- Samanco, fim de papo!
- Ganga, sim. - Resmunga o zagueiro, mal humorado.
- O negócio é o seguinte: nesta altura, o juiz já viu a repetição da jogada em câmera lenta e confirmou a burrada que cometeu. - O técnico explica com um sorriso maroto. - Até mesmo um juiz sério vai querer normalmente compensar uma injustiça desse tipo. Ele quer compensar, mesmo que não saiba que quer, vocês estão entendendo? Ainda mais esse gringo em especial, que eu já conheço de outros bois-bumbás... Vão por mim, depois do que ele fez, é só se jogar dentro da área sempre que perder a bola que, mais tempo, menos tempo, ele acaba apontando para a cal. - Nascimento faz uma pausa proposital para estudar a reação dos comandados.
- Ganga, sim! - Exclamam os atacantes Ngomo e Angoma ao mesmo tempo, com sorrisos reluzentes em seus rostos negros.
- Não estou pedindo para vocês fazerem nada de ilegal, entendam bem. - Continua Nascimento. - Nada que já não tenha sido feito antes...
- Ganga, sim! - Responde o time inteiro em uníssono. Os titulares olham uns para os outros e para o técnico, sorrindo francamente.
Nascimento sabe que não há preconceito ou discriminação contra ele entre os jogadores. Para seus comandados ele não é negro, cafuzo, índio ou branco, mas simplesmente Nascimento, o maior jogador de futebol de todos os tempos; um ídolo acima do bem e do mal para qualquer futebolista ou peladeiro em ambas as margens do rio São Francisco.
Não possui o mesmo status semidivino ante o pessoal da comissão técnica. Nem mesmo com Mzambi. Tampouco com os outros sobas e hierarcas palmarinos que conheceu nestes três anos de residência, ora em Subupira, em Salvador ou na Cerca Real do Macaco.
Ele é considerado negro no Brasil. Lá haveria a tradicional pátina de preconceito velado contra si, não fosse ele um grande jogador e uma celebridade mundial. As coisas sempre foram diferentes em Palmares: lá muitos o consideram mulato, alegando que ele não é de fato um negro puro. No início de seu trabalho, antes das eliminatórias, muitos cronistas esportivos chegaram a se referir a ele pejorativamente como o "branco Nascimento", da mesma forma que alguns historiadores palmarinos ainda se referem hoje em dia à famosa personagem histórica da região diamantina das Minas Gerais, figura crucial no tráfico de diamantes daquela região para a Primeira República, como "A Branca Chica da Silva"...
As vitórias da seleção conseguiram calar a boca dos detratores. Antigos desafetos na crônica esportiva de Palmares passaram das ofensas aos elogios desmedidos ao "Rolo Compressor do mago brasileiro". As charges que apareciam nos jornais começaram a representá-lo com tonalidade de pele cada vez mais escura, bem próxima à real, num sinal flagrante de sua ascensão no conceito popular da Primeira República. Ah, nada como uma série de resultados favoráveis para mudar a opinião da crítica! Depois do êxito da campanha das eliminatórias, todos pareciam venerá-lo como a um novo Jesus Negro de Subupira.
- Quanto ao mais - continua Nascimento -, temos um condicionamento físico superior ao deles. Se por acaso formos para a prorrogação, eles não vão ter a mínima chance. Araçari, aperta a marcação no Zequinha. Os ataques deles estão sendo feitos quase todos pelo seu lado e já vimos que o cara é um perigo.
- Deixa comigo, meu ganga. - Responde o cafuzo que, não obstante o nome nheengatu, descende de uma tribo xavante da fronteira sudoeste com o Brasil. Nascimento observa o ar confiante do lateral, enquanto este torna a atar os longos cabelos negros num rabo-de-cavalo com sua fita colorida de palha trançada.
- Savimbi e Dias, quero ver vocês avançando com a bola até a altura da meia-lua e centrando para dentro da área deles, para o Shagga, o Angoma e o Ngomo acertarem de cabeça, combinado?

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Pátrias de Chuteiras

Incluído em:

Outras Copas, Outros Mundos

org. Marcello Simão Branco

Ano-Luz (Brasil)

1998

Gerson Lodi-Ribeiro escreveu:

 

Outras Histórias...

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 179

1997

 

O Vampiro da Nova Holanda

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 187

1998

 

Terror em Pedra Torta

(com Miguel Carqueija)

Gerson Lodi-Ribeiro organizou:

 

Como Era Gostosa, a Minha Alienígena!

Editoria Ano-Luz (Brasil)

2002

(leia a crítica de Eduardo Torres)